Minha mãe contava muitas histórias, umas um tanto estranhas, quando sua mente visitava seu passado e vagueava pelos seus tempos de moça nova, lá pelos idos da década de cinquenta. Seu olhar se perdia quando sua mente parecia viajar pelas colinas recortadas por velhas e poeirentas estradas, atravessando riachos e se embrenhando pelo denso cerrado aos pés destes montes, lembranças da sua juventude.
Havia, segundo contava, uma casa que ficou por muito tempo abandonada, como uma tapera velha, uma espécie de refúgio de morcegos e fantasmas. Naquele tempo era comum se falar em assombrações, visitantes de outro mundo, espíritos que teimavam em permanecer rodeando a velha morada e trazendo desassossego aos novos moradores.
Nessa casa morou uma viúva com lepra, sozinha ao Deus dará, sem filhos. Ninguém ousava visitá-la. Quem dava notícias dela, dizia tê-la visto de longe, estendendo os lençóis no varal ao sol, num vasto quintal salpicado de bananeiras e laranjeiras, com roseiras que tremulavam ao vento ao lado da bica d’água. O pavor de se contaminar com a doença era tamanho que todos os habitantes da redondeza pareciam haver combinado de deixá-la morrer à míngua. Os mais assombrados diziam que o ideal era incendiar a velha casa e todo o quintal, quando a malfadada senhora fosse tida como morta, isto é, depois de um certo tempo que não saísse mais ao sol, ainda que fosse apenas para varrer a porta da casa e regar as flores, tarefa cotidiana de toda dona de casa da fazenda.
Certa feita, contava minha mãe, uma família muito devota se mudou para uma fazenda próxima e logo ficou sabendo de todas as histórias do lugar. A senhora, uma cristã fervorosa, era evitada por quase todo mundo, com medo da coação para uma mudança de religião, pois ela falava de Deus de forma ousada, como se fosse íntima. Isso incomodava o povo ao redor, acostumados a verem Deus como um ser inacessível, a não ser através da intercessão dos santos, estes cultuados religiosamente com festas, terços e novenas.
Minha mãe contava essa como sem entender direito a coragem daquela missionária, que decidiu subir a colina e enfrentar o mal que habitava aquela casa isolada, com as janelas de madeira fechadas e mato crescendo ao redor. As telhas coloniais artesanais e o descascado das paredes expondo os adobes, faziam um contraste com as roseiras sem poda e o vento frio daquela manhã de sol fraco. Quem viu de longe contou que a destemida mulher subiu sozinha em passos rápidos, a primeira vez sem nada nas mãos, com seu vestido branco que mais parecia a vestimenta de um anjo.
Depois de forçar a entrada pela porta da frente da casa, ela ficou quase uma hora lá dentro, sabe-se lá fazendo o que. Quando saiu, desceu a colina em passos ainda mais rápidos e voltou um tempo depois levando duas pesadas sacolas. De repente, para os curiosos que acompanhavam a saga vendo de bem longe, na curva da estrada, subindo um cocho de madeira próximo à porteira de entrada na fazenda, algo muito estranho aconteceu: as janelas foram abertas, lençóis foram postos de novo nos varais e a fumaça subiu pela chaminé do fogão à lenha.
Aquela mulher voltou àquela casa por vários dias seguidos, até uma ambulância vinda da cidade levar a paciente para onde até hoje, dizia minha mãe, ninguém sabe. O que se soube depois, foi o que a missionária contou para uma vizinha, antes de se mudar da região e ser duplamente desprezada: pela religião e pelo medo da transmissão da doença que porventura ela tivesse herdado no contato com a velha senhora.
Ela contou que a casa estava totalmente insalubre, sem varrer há dias, escura, abafada, sombria. Tão logo encontrou a velha senhora doente na cama à espera da morte, recostada num travesseiro com uma garrafa de água ao lado da cabeceira. Tratou de ajudá-la num banho, trocou suas roupas de cama, abriu as janelas para o sol entrar com toda força. Fez uma sopa com os legumes que levou e ajudou a moribunda a se reerguer. Depois de alguns dias, sempre voltando à casa e gastando parte de seus dias por lá, tratou de providenciar um jeito de conduzir a senhora a um asilo na cidade, para se tratar e viver o tempo que Deus lhe desse.
Quanto às escaras na pele da velha senhora, disse que viu desparecer aos poucos, depois de orar e impor as mãos sobre ela, repetindo que Jesus havia ensinado que, quem nele cresse, os sinais milagrosos seriam visíveis. Dizia ainda que era apenas uma filha que tinha prazer em fazer a vontade do Pai, embora muita gente não soubesse a que pai ela se referia.
Minha mãe encerrava a história nos deixando atônitos e boquiabertos. Afinal, que tipo de oração era tão poderosa? O que encheu de coragem a misericordiosa missionária a ponto de esquecer-se de si mesma e se dedicar a uma estranha, isolada e moribunda relegada à própria sorte?
Até hoje, quando lembro dessa história me arrepio. Dentre tantas outras que minha mãe contava, essa, sem dúvida, poderia ter tido um fim trágico, se não tivesse tido um desfecho tão exemplar e, ao mesmo tempo, tão sobrenatural.