Um (in)certo amanhã

imagem: envato

8

Era o fim de mais um dia na rotina de um universitário longe de casa. Pegar o ônibus lotado no ponto da rodovia intermunicipal até a cidade mais próxima, praticamente colada, a menos de cinco quilômetros dali para voltar à quitinete alugada onde morava temporariamente, que mais parecia um cortiço. Algumas vezes fez o percurso a pé, não para respirar o ar puro com odor de eucaliptos próximo à ponte do riacho, mas por pura falta de grana mesmo.

Era fim de tarde, dava para ver o sol querendo se esconder atrás das montanhas azuis ao longe, em plena baixada fluminense. Os longos gramados da Universidade pontilhados de jardins e prédios gigantescos em arquitetura neocolonial ficaram logo para trás, dando lugar às primeiras casas, barracos e botecos do pequeno distrito.

Quando desceu do ônibus, naquele ponto empoeirado com as vigas cheias de propagandas coladas, mirou a banquinha de guloseimas baratas logo à frente, na calçada. O mesmo senhor de sempre resmungava qualquer coisa enquanto ajeitava as embalagens de paçocas rolhas, chicletes e gomas coloridas. Ele comprou um pequeno saco de cereais de milho assados, retirou umas moedas do bolso e estendeu a mão para o velho ranzinza. “Até amanhã” – disse costumeiramente antes de olhar a rodovia para atravessar e pegar a rua ao lado do supermercado para se enfurnar bairro adentro. “E se não houver amanhã?” –  resmungou o vendedor parecendo cultivar um enorme tédio na alma e rogasse uma bela praga.

O jovem se virou e ficou encucado com aquilo. Ajeitou a mochila nas costas, se certificou que a barra estava limpa e atravessou o asfalto, ganhando a calçada quebrada do outro lado, caminhando pela areia solta de um terreno que separava os estabelecimentos comerciais da margem da rodovia.

Como assim?” –  pensou… O que aquele cuja barba grisalha parecia mesmo de um profeta quis insinuar com uma pergunta tão sinistra? Como que fosse uma maldição, não parou de pensar no assunto até dormir, lá pelas tantas. Por incrível que pareça, ficou incomodado com a ideia aparentemente impossível de que aquele fosse o seu último dia. Perdeu o sono.

Calhou de chover muito aquela noite e os raios e trovões pareciam ser apocalípticos. Alguns gritos ao longe, vindos sabe-se lá de onde, só pareciam contribuir para uma espécie de pânico que lhe sobreveio de madrugada. Não conseguia parar pensar na remotíssima possibilidade de acordar de manhã e tudo estar revirado, como um dilúvio, um tsunami, o próprio fim do mundo. Parecia exagero, mas os pensamentos tomaram tal proporção, que ele passou a fazer de tudo para dormir, desde contar carneirinhos a respirar profunda e vagarosamente por vezes seguidas.

Horas depois, acordou com os mesmos barulhos de sempre. O carro do vizinho saindo da garagem, as freadas bruscas dos caminhões na rodovia não tão longe, a irritante música do despertador no celular. Uma espiadela pela janela e tudo estava normal.

Calado e observando tudo à sua volta enquanto caminhava, não demorou a avistar, do outro lado, o velho vendedor em sua barraca, às voltas com a lona azul estendida para se proteger do sol que prometia estourar miolos já de manhã. As mesmas caras de sempre no ônibus, o riozinho correndo na mesma direção como no dia anterior, o mesmo cheiro fresco mentolado entrando pelas janelas no trecho próximo à ponte. Tudo como antes, ainda bem, pensou consigo.

Nos dias que se seguiram, a rotina sufocava seus pensamentos daquela noite, mas alguma coisa mudou dentro dele. Passou a pensar na finitude de sua vida, nos seus sonhos, no tempo que lhe faltava ou desejava ter. Pareceu haver recuperado a fé natural de que, no dia seguinte, tudo estaria nos seus lugares novamente, mas parecia perceber que ele próprio não seria sempre o mesmo, pois o olhar e a percepção das coisas mudaria todo dia.

Numa das noites que se seguiram, se pegou orando em voz alta, enquanto fechava a geladeira após tomar seu costumeiro copo de leite gelado antes de se deitar. Meu Deus, disse, me ensine a não me preocupar tanto e não ser tão impactado pelas inquietações das outras pessoas. Sobretudo, me leve a um nível de confiança tal que, se atravessar aquela ponte e perceber que o riacho mudou de direção ou que os jardins da universidade se deslocarem para o outro lado da rodovia ou que os prédios estão de ponta-cabeça, eu não me abale, mas simplesmente confie que tudo se fez conforme a Sua vontade, para um propósito que, ainda que eu não entenda, eu não me desespere.

Compartilhe esse conteúdo!

Inscrever-se
Notificar de
guest
0 Comentários
mais antigos
mais recentes Mais votado
Feedbacks embutidos
Ver todos os comentários
0
Adoraria saber sua opinião, comente.x