Gritos, copos e pratos voando em direção à parede. Agressões, choro, solidão e abandono. Esse foi o ambiente no qual fui gerada durante os nove meses. Minha mãe disse que meu parto foi o mais tranquilo que ela teve. Uma cesariana, sem gritos e sem dor. Um leve chorinho motivado pelos médicos, afinal eu precisava provar que estava viva. Fui um bebê tranquilo, não dei muito trabalho, a ponto de famílias da igreja desejarem ficar comigo boa parte do tempo.
Separávamos um dia da semana para irmos à igreja e fazermos visitas. Era para ser o dia mais abençoado da semana, família reunida e feliz, mas eu odiava esse dia. Mal chegávamos da igreja para o almoço em família e já não existia pratos para comer, pois todos eles tinham sido arremessados contra a parede. Na falta de pratos e copos, ia a jarra de suco mesmo, e todos terminavam em volta da mesa encharcados de limonada.
Estava decidida a jamais constituir uma família para sofrer daquele jeito. Vivia em meu quarto trancada, tampando os ouvidos com o travesseiro para abafar os terríveis sons de gritos. E assim fui crescendo e sobrevivendo nesse ambiente. Fiz xixi na cama até a adolescência, pois de alguma forma eu precisava sinalizar os abusos sexuais que sofria por parentes próximos, vizinhos ou alguém que tivesse a oportunidade. Não conseguia falar ou me expressar em meio ao caos, afinal era a filha de obreiros da igreja e uma futura candidata ao cargo de cantora oficial dos cultos.
Mudamos para outro Estado, o oposto de onde estávamos. Por mais difícil que poderia parecer, minha mãe sempre visou um futuro melhor para nós. Achei que com essa mudança, cidade nova, casa nova, escola nova, tudo iria mudar. Mas não mudou! Os pratos e copos se empossaram de suas asas novamente e me achei de olhos e ouvidos tapados mais uma vez.
Terminei o colégio aos trancos e barrancos. Não tinha a menor noção do que fazer. Embora já praticava o canto, não o via como fonte de renda e profissão. Estava completamente sem norte. Foi nesse momento que veio a primeira tentativa de suicídio, queria gritar para alguém ouvir, queria chorar, saber tantas respostas, saber se era amada, se era alguém, se ia pra algum lugar e com quem ia ficar. Então, eu clamei a Deus naquele dia, Ele me ouviu, atendeu o meu clamor e por um tempo me recuperei daquele dia. Logo voltei a viver meus dias sem expectativas do amanhã e muito menos sem me entregar e confiar na única pessoa que poderia me ajudar: o meu Criador.
Me casei muito jovem e sabia que não queria “aproveitar a vida”, afinal já a conhecia. Imatura, cheia de feridas e traumas, levei o pesadelo da minha infância para dentro de casa. Primeira separação em três meses. Mais uma vez me via em total desequilíbrio, sozinha, chorando no chão da cozinha junto aos cacos de vidro. O que eu estava fazendo com a minha vida?
Esperava que o casamento iria me salvar e que quando assumisse o controle das coisas, tudo seria diferente do meu passado, que vivia presente. Depositar total confiança no casamento, filhos, esposo, concurso, profissão ou em mim mesma, foi meu maior erro. A insegurança faz isso, nos aliena e cega. Entreguei o meu coração, esperando e tentando controlar aquilo que almejei ser a saída. Resultado: fracasso.
Eu havia crescido, mas os terrores da infância me assombravam todos os dias. Uma insegurança mortal atormentava e o pânico era cada vez maior. Medo da solidão, pesadelos e sentimento de abandono cegavam o desejo de ser mãe. Negava a permitir que um filho meu passasse pelo mesmo que sofri. Ferida comigo mesma, minha infância, passado, com meus pais, com a igreja e com Deus. Como ser mãe assim?
Questionava a Deus: por que Ele permitiu passar por tanta dor? Por que tantas pessoas me machucaram? Por que cresci ouvindo falar d’Ele, na casa d’Ele, mas não conseguia vê-lo, senti-lo e tocá-lo? Onde Ele estava quando precisei? Por que meu pai não acreditou em mim quando decidi contar sobre os abusos? Por que não conseguia descobrir o meu propósito? Choro, muito choro. Foi aí que veio a segunda tentativa de suicídio. Pela bondade e misericórdia do Senhor, mais uma tentativa frustrada.
Sim, fui essa pessoa que sentia uma dor tão extrema, que não enxergava nenhuma expectativa, a não ser a morte, que poderia colocar um fim naquele pesadelo. Não importava quem eu era mais. Me reduzi a “menina da igreja que cantava bonito”. Cumpria a escala de domingo certinho, ia regularmente aos ensaios, algumas tentativas frustradas de festivais e uma alma necrosada.
Os dias se passaram e mais uma vez Deus, em sua infinita bondade, alegrou o meu coração. Descobri que estava grávida, mas não estava feliz. Fiquei em pânico. Como cuidar daquele ser no estado em que me encontrava?
Segunda edição, com certeza…
Confira a parte II desse testemunho na próxima edição da Revista Renascer – mês de abril e se emocione com o agir de Deus.