Qual é a sua dor?

Quero compartilhar com os leitores da Revista Renascer um pouco do meu testemunho de vida e de dor, mas que teve em minha vida um efeito restaurador. Deus sabe de todas as coisas, não é mesmo?

Após 7 anos de casamento, eu e meu esposo planejamos a gravidez, e tudo aconteceu de forma muito natural. Eu era saudável e não tivemos problemas para engravidar. Na 19ª semana da gestação, fui fazer uma ultrassonografia de rotina para saber o sexo do bebê, e foi nessa ocasião que tive uma grande surpresa. O médico que me atendeu nesse exame não era conhecido e o diagnóstico sobre a criança foi assustador. Ele achou que já sabíamos da condição da criança e disse de forma bastante bruta: “Essa criança tem duas cabeças”. Não foi nada fácil ouvir aquilo daquela maneira. No computador ele digitou “Hidrocefalia severa”. Eu sabia o que era, e então desabamos. Entramos em estado de choque. Na ocasião, o médico em questão avaliou e falou para que fossemos o mais rápido possível ao meu médico do pré-natal, para decidir sobre interromper ou não a gravidez.

Meu ginecologista é muito católico e em nenhum momento cogitamos a possibilidade de retirar. Levamos o exame para o meu médico e ele pediu uma ultrassonografia morfológica para comprovar. Eu tinha fé que estava tudo bem, que o médico que fez a ultrassonografia estava errado. Na sala de espera, eu abri o laudo e vi que era pior do que imaginávamos. No exame era possível ver outras má formações e novamente eu desabei. Estava com 25 semanas quando fiz esse exame, e o restante da minha gestação foi muito dolorida e difícil.

Os exames não apontavam massa encefálica, e o médico falou que minha filha (agora eu já sabia o sexo), poderia ficar apenas algumas horas viva, e que tudo era incerto.

Fui criada em um ambiente cristão, mas com muita justiça própria. Eu achava que Deus “me devia” por causa do meu “bom comportamento”. Eu achava que Deus só me daria coisas boas. No início eu cheguei a questionar Deus, o porquê estava passando por aquilo, justo eu. Não conseguia orar e nem imaginar como seria.

Marcamos o parto, pois eu não podia entrar em trabalho de parto, seria perigoso para a bebê. As últimas semanas foram de cuidado constante. Esperávamos que nada daquilo fosse verdade. Ela nasceu no dia 13 de dezembro de 2007.

Ao nascer, os médicos nem permitiram eu ficar muito tempo com ela (segundos apenas), era uma cena muito chocante. Ela tinha “um buraco” no rosto, tinha lábio aberto e apenas uma narina. A ausência da mão também era uma imagem chocante. Eu passei muito mal durante o parto. Meu marido não quis entrar e o médico também não insistiu. Quando eles colocaram o rostinho dela perto de mim, eu fiquei em choque. Era como se eu estivesse em um filme de terror. Queria que nada daquilo fosse verdade.  Eu dei uma câmera para o assistente tirar fotos, ele me passou depois, eu segurei a câmera, e tudo que eu queria era que meu marido não visse aquelas imagens. Naquele momento eu me senti totalmente impotente.

Quando eu cheguei no quarto, ele pegou a câmera e percebeu que tudo era verdade. Ficamos sem saber o que falar um para o outro. Minha filha foi direto pra UTI e todos do hospital falavam a mesma coisa: “você viu o neném que nasceu?”. É muito ruim saber que estão falando do seu filho.

No dia seguinte, eu conversei com o neurologista que fez os primeiros exames. Ele disse que levariam ela para o centro cirúrgico e que tínhamos que estar cientes de que ela poderia não sair de lá. O médico disse que os exames não detectavam cérebro, apenas quando abrissem a cabeça dela que poderiam ver realmente. Ela não tinha o crânio formado e havia uma bolha de líquido de 58 cm. A cabeça era de adulto, com um corpo de bebê. Ela foi para a cirurgia e, pela graça de Deus, com 18 dias ela saiu da UTI. Levamos ela pra casa com uma sonda, para que ela pudesse se alimentar. Porém, ela começou a engasgar com a sonda, e então, começamos a dar leite na colher, até descobrir uma maneira melhor.

Levamos em terapias, fonoaudiólogo e todos os especialistas que pudéssemos levar. Eu não tive resguardo, pois com 15 dias já estava dirigindo para levá-la nos lugares. Fiquei com medo de como seria e minha sogra me falou que com alguns dias saberia como fazer, que não acharia difícil. E foi exatamente assim. Nos primeiros dias era novidade, mas fomos atrás e procuramos ajuda. Com quase um mês de vida, a válvula dela entupiu e ela teve que fazer uma nova cirurgia.

Ela sofria o risco de falecer a qualquer momento, todo dia era uma caixa de surpresas. Sabíamos que ela tinha problema na cabeça, mas não sabíamos das outras questões. Fomos descobrindo com o tempo. Toda vez que fazíamos algum exame, descobríamos algo. Ao todo, foram 15 cirurgias na cabeça com mais duas na boca, e toda vez que deixávamos ela no centro cirúrgico, pensávamos que ela não voltaria, mas pela glória de Deus, ela sempre voltava. Até o médico ficava sem acreditar.

Minha filha sempre dormiu e comeu bem e nunca ficou doente por desnutrição. Tinha uma rotina de cuidados, principalmente com a alimentação de 3 em 3 horas. Nós não paramos para pensar na situação em si, nós apenas vivemos. Me lembro que assim que ela nasceu, quando deixamos ela na UTI e voltamos para casa, eu já sentia amor por ela, mas era diferente. É estranho quando você pensa em amar um filho sem receber nada em troca (nenhuma expressão, nenhum reconhecimento afetuoso). As dificuldades eram tantas, que nós não sabíamos como oferecer esse amor.

Quando tudo estava estabilizado, a saúde estava estabilizada, eu me dei o direito de cansar. Há dois anos, eu passei por uma depressão. É muito comum pessoas que cuidam de outras passar por uma exaustão emocional e psicológica. Hoje eu vejo o cuidado de Deus até nisso. O Senhor estava me dando bagagem e estrutura para lidar com o que eu estou passando hoje. Tive uma síndrome de ansiedade: era uma tristeza e uma dor na alma que nada externo dava algum prazer ou alegria. Foi um período curto. Nesses dois anos, Deus me deu oportunidades para me conhecer melhor e me avaliar. Depois disso, eu vi que tinha dois caminhos: olhar para aquilo e contornar, ou me afundar ainda mais. Deus me deu a oportunidade de conhecer o amor d’Ele de uma forma que eu nunca tinha sentido, de conhecer a Palavra de Deus e encontrar o refúgio nela. Eu conhecia a respeito de Deus, mas não O conhecia de fato. Entendi que nós não podemos fazer nada para merecer o que o Senhor tem para nos dar. Entendi que foi bom eu ter sido boa filha e obedecido meus pais, mas Ele não me devia nada, pois Ele continuava sendo Deus.

Então, no dia 27 de setembro de 2018, o Senhor recolheu a minha filha. Meu marido sempre ia ao quarto dela para vê-la antes de sair para o trabalho. Naquele dia, quando ele chegou no quarto, ela já tinha falecido. Morreu dormindo.

Nos últimos meses, eu tive dois sonhos com ela: em um ela estava sendo curada; no outro eu estava em um lugar, conversando com algumas pessoas, e ela caminhava em minha direção. No sonho, ela me chamou de mãe e me agradeceu por tudo. Eu acordei e falei para o meu marido que estava chegando o tempo dela. Eu só lembrei desse sonho no dia que ela faleceu. Nós não tínhamos como saber o que estava acontecendo dentro dela, mas Deus nos preparou, nos confortou e nos deu a oportunidade de viver com ela durante dez anos. Hoje sentimos a falta e a ausência dela.

A dor sempre vai existir, mas nós podemos escolher viver sentindo a presença de Deus, porque sem Ele, a dor se torna insuportável. Paulo fala que a nossa missão é saber convergir para Cristo todas as coisas, inclusive nossas dores. Se conseguirmos ver Deus em tudo, seremos muito mais felizes.

A minha primogênita nunca vai deixar de ser a nossa filhinha. Nos lembramos todos os dias e sabemos que ela foi um presente de Deus em nossas vidas. Hoje eu sei que ela está curada, lá na eternidade.

Ana Paula Tavares Pereira Aquino

Esposa, mãe, do lar e empresária. Diaconisa e ministra do ministério de louvor da igreja Batista Renascer

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