Uma noite pra chamar de Natal

Foi como uma viagem no tempo. Enquanto o rapaz sem camisa, com calção vermelho comprido e engraçado cobria o seu carro de espuma naquele canto da praça, só lhe restava esperar a finalização do serviço assentado num banco debaixo de uma frondosa manguba, degustando lentamente um picolé e observando o movimento das pessoas no extenso gramado que circundava os canteiros em flor.

Alguns trabalhadores trajando uniforme alaranjado se moviam para lá e pra cá, às voltas com fios, treliças, armaduras de pinheiros de aço e lâmpadas coloridas. O Natal estava chegando e era preciso decorar tudo a tempo. Muita gente, como em todos os anos, trariam suas crianças no início da noite para ver o colorido vibrante, os túneis de luzes, as renas, os trenós e as árvores salpicadas de luzes, que mais pareciam gotas reluzentes que piscavam alternadamente.

Foi neste momento que sua mente divagou… voltando a um vilarejo bucólico no interior do país, uma paisagem com mais de meio século cravada na sua memória. As primeiras lembranças de seu Natal se sucediam como um filme.  A casa ficava na extremidade de uma rua, numa pequena chácara depois das casinhas de tijolos de barro e telhados baixos, com portas e janelas de madeira e flores rasteiras ao pé das paredes, onde, junto aos bancos de troncos lavrados, os idosos viam a noite cair pesadamente sobre aquelas bandas, esperando o sono chegar.

À frente da casa tinha um espaço de terra batida, sempre muito bem varrido, antes da grama verde e do rego d’água que refletia o luar. Ao lado da humilde casa, tinha uma pinguela, uma espécie de ponte improvisada com uma tábua rústica, sobre a derivação do rego que abastecia a bica d’água, que se estendia até o quintal, entre hibiscos vermelhos, roseiras e trepadeiras de flores amarelas.

Noite de Natal. O menino estava ali, olhando pela fresta da janela, quando uma criança de sete anos já deveria estar sonhando alto. Quem sabe não teria a sorte de ver o Papai Noel passando para deixar os presentes, montado em seu jumentinho? Papai havia ensinado que era preciso deixar um punhado de capim e uma xícara de café na soleira da janela, para agradar o jumento e também o bom velhinho. De qualquer forma, era uma esperança, embora não imaginasse como um senhor rechonchudo desceria pela chaminé do fogão a lenha para deixar os presentes embaixo das camas, pois com toda a certeza, os pacotes estariam lá, dentro dos sapatos estrategicamente colocados ao lado da cama naquela noite mágica.

Vencido pelo cansaço da espera, o garoto ainda esticava o olhar pelo céu pontilhado de estrelas, passando por entre os galhos de dois pés de cedro gigantescos que se erguiam majestosamente no fim do gramado à frente da casa. Naquele amanhecer, tão logo se livrou das cobertas e pulou da cama com o coração acelerado, a visão do presente sobre os sapatos é a lembrança mais vívida até hoje: um cavalinho verde de plástico, com rodinhas nas patas.

Além disso, os sapatos estavam abarrotados de balas embrulhadas em vermelho, tipo aquelas do armazém do centro do arraial, armazenadas em latas decoradas. O capim havia desaparecido da janela, a xícara esmaltada estava vazia. O próximo passo era se juntar às outras crianças, dos mais velhos aos mais novos, numa euforia deliciosa, para matar a curiosidade sobre o que o Papai Noel havia deixado para cada um.

“Doutor, tá pronto!” Impossível não voltar à realidade com aquele grito vindo do canto da praça, onde outros carros já disputavam a vaga para a ducha. Enquanto caminhava em silêncio pela praça na direção do veículo, acenou para os trabalhadores fixando um pinheiro de arame e desejou Feliz Natal. Já no trânsito, de volta para casa, em silêncio, pensou no significado do que havia desejado aos servidores trabalhando e ao rapazola serelepe, com palavreado cheio de gírias, agradecendo pelo “extra” ao preço combinado pelo serviço.

Não existe Feliz Natal sem esperança, sem a expectativa de que algo muito bom irá acontecer, sem a euforia dos reencontros memoráveis. Ainda que a inocência de acreditar em um Papai Noel à moda sertaneja tenha se dissipado, ainda que nunca se lembre que fim levou o cavalinho verde, ainda que hoje só restem os dois pés de cedro no meio do pasto para testemunhar a história, mesmo assim, fica o legado dos valores que fizeram com que aquele momento se perenizasse na memória, além da certeza de que será sempre possível reinventar um jeito de ser e fazer alguém feliz.

Pr. Anibal Filho

Doutor em Produção Vegetal pela UFG e Pastor auxiliar da Igreja Batista Renascer.

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