Uma parábola urbana

Ao levantar a vista sobre o volante, só conseguia ver a longa fileira de carros que se moviam vagarosamente e paravam intermitentemente no início da manhã de segunda-feira, quando parecia que a cidade inteira ia na mesma direção, tentando transitar pela mesma marginal. De nervoso que estava, dividia as atenções com o GPS do aplicativo que evidenciava a extensa faixa vermelha e as caras fechadas dos também motoristas dos carros nas pistas laterais, que pareciam vociferar contra o trânsito e praguejar contra a vida.

Seu carro prata importado e seu terno de grife combinavam com os sapatos quase reluzentes e seu smartwatch com pulseira dourada. Volta e meia olhava pelo retrovisor através dos óculos portentosos e corria a mão direita pela barba cerrada e bem feita, elegantemente impaciente, pra não se dizer preocupado. Uma reunião com acionistas minoritários há tempos agendada era a oportunidade que esperava para se tornar o único dono do conglomerado de hotéis de primeira classe espalhados pelo país.

Cerca de pouco mais de meio quilômetro à frente, um inquieto e ansioso motorista tentava fazer seu velho automóvel aproveitar as pequenas pausas e se deslocar alguns metros por vez, já pressionado pelas buzinas de quem se esgueirava tentando mudar de pista. “Tira essa lata velha da frente”, esbravejava um. “Encosta este entulho”, gritava outro. Como sair daquele tumulto? Já não bastava ter saído do subúrbio tão contrariado, com a cabeça cheia de problemas em pleno início de semana? Sem dinheiro no bolso, mulher doente em casa, sem café da manhã e agora sem combustível no meio de uma via de alto tráfego, ele não sabia o que fazer… não era o que se pode chamar de dia de sorte!

Alguns minutos depois, aqueles dois homens de mundos e realidades tão distintas, com um abismo social imenso entre eles, se encontram no meio das pistas, ambos fora dos carros, sob os olhares e xingamentos de quem tentava ir avante, sem sequer imaginar o tom da conversa entre eles.

O que se vê em seguida parecia inimaginável. O magnata de terno volta ao seu carro de luxo e o atravessa na pista central, parecendo proteger a lata-velha. Tira o paletó de corte italiano, guarda o relógio no bolso da calça, arregaça as mangas da alvíssima camisa branca e se posiciona atrás do velho automóvel, depois de orientar que o motorista retomasse o volante e liberasse o câmbio.

Em seguida, ele empurrou o carro sozinho lentamente até o acostamento, fazendo sinal com as mãos, parando os carros da faixa lateral. Trabalho feito! Enquanto desliza as costas da mão para remover o suor da testa, caminha até a porta do velho carro, onde o pobre e atônito motorista balbucia palavras entremeadas com lágrimas reticentes de vergonha e gratidão.

Na ligeira troca de palavras, sob os gritos de quem ameaçava colidir com o luxuoso veículo parado na pista, ainda se vê uma carteira aberta, uma nota graúda colocada no bolso do motorista à deriva, uma tapinha nas costas e um sorriso. Talvez isto te ajude no momento, diz o empresário se afastando, retornado a seu luxuoso carro, desdobrando a manga da camisa e desfazendo em minutos aquele impensável cenário urbano.

Aquele homem me lembrou o bom samaritano, mas, principalmente, me trouxe de lampejo à memória o próprio Jesus Cristo, deixando Sua glória no céu, para intervir no curso da humanidade. Antes de chegar ao meu destino, não consigo parar de pensar naquela cena.

Como podemos ser tão indiferentes aos infortúnios que acontecem aos outros, bem à nossa frente? Não sei como você se sentiria assistindo a tudo aquilo. Só sei que naquela noite dormi de carapuça!

Pr. Anibal Filho

Doutor em Produção Vegetal pela UFG e Pastor auxiliar da Igreja Batista Renascer.

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