Se meu velho fusca falasse

imagem: envato

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Aprendi com ele a dirigir. Aliás, ele foi uma porta de entrada para irmãos e primos no universo automobilístico, e tão logo eu fiquei confiante na aventura de pilotar. Claro, esta confiança só veio após alguns meios-fios brancos ficarem rajados de preto, o muro da casa vizinha se rachar de ponta à ponta, depois de receber um impacto grosseiro, além de outras imperícias que cometi a bordo do meu novo colega.

Isso sem contar a aventura de terminar a viagem a pé com a esposa e as crianças, porque o motor do fusquinha decidiu empacar a menos de um quilômetro de casa. Foi um tempo em que eu pensava que bastava entrar, rodar a chave, acelerar e frear na hora certa, além de caprichar nas curvas obedecendo aos sinais de trânsito. Eu ainda não estava atento para os clamores do carro, às vezes gemendo por um carinho chamado manutenção.

Houve, entretanto, duas lições que a lida com este companheiro me fez aprender, sendo uma delas uma lição primorosa, que eu trouxe vida afora. A primeira vez foi quando, num finzinho de tarde, tomei uma autoestrada em direção a uma cidade próxima e o carrinho mais parecia um burrico teimoso, que rodava alguns quilômetros e insistia em ficar no acostamento por alguns minutos, como se estivesse descansando. Para encurtar essa história, a noite chegou logo e, um tempo depois, eu me encontrava numa oficina minúscula, sem varanda e entupida de peças velhas, na entrada da cidade. O fusquinha bege estava lá, de boca aberta, como quem olhasse para as estrelas que já vinham despontando, esperando um milagre.

O mecânico vestia um macacão carregado de óleo e fuligem e revirava umas caixas à procura de uma peça minúscula no meio daquela desordem toda. Eu fiquei impressionado: como uma peça menor do que uma moeda de um centavo pudesse fazer tanto estrago se estivesse danificada, que era o caso.

Fiquei muito pensativo a respeito de como eu, um professor na área de engenharia, fosse tão ignorante a respeito do funcionamento daquele carro e fosse, por conseguinte, tão dependente de um senhor semianalfabeto, num lugar pouco recomendável, para conseguir voltar para casa.

Doutra feita, depois de sucessivas tentativas de subir com o mesmo fusquinha numa ribanceira na entrada da cidade, vindo da zona rural, também à noite, o mesmo dito cujo era recoberto de poeira a cada carro que passava pela ponte, quando uma névoa escura só era traspassada pelo brilho dos faróis. Isso acontecia, porque o bendito carro só alcançava a metade da subida e depois morria, tendo que retornar à ponte para mais um embalo e uma nova tentativa de romper o declive.

Sem saber o que fazer, pensando em deixar o carro por ali mesmo, terminar o percurso a pé e ir buscar auxílio na manhã seguinte, ouvi um trote de um cavalo que puxava uma carroça passando por ali. Eu sequer contemplei a face do condutor no meio da poeira e das trevas noturnas, mas ouvi a sua voz me orientando, atropelando a gramática e me dizendo com clareza para desligar os faróis e economizar a potência da bateria na subida.

Quando finalmente alcancei as primeiras ruas da cidade, já iluminadas pelas lâmpadas dos postes, é que me dei conta, de novo, da minha ignorância e da dependência de alguém tão simples, um iletrado desconhecido que, por alguma razão, dava lições a um mestre.

Independente de falar sobre experiências de vida ou profissões, do limite de conhecimento que cada um estabelece para si, prefiro versar sobre humildade, sobre respeito a quem muitas vezes desprezamos por considerarmos “pequenos” demais diante de nós, mas que nos fazem sentir muito inferiores diante de sua sabedoria e gentileza.

Se o meu velho fusca, que já nem sei se ainda existe, falasse, certamente riria de minha arrogância de me considerar superior, quando alguém para quem se olha e despreza, pode ter a chave que abre todas as portas do mundo: o conhecimento.

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