Não havia tido exatamente uma briga, mas ele estava sem falar com o vizinho há dias, por causa de uma desavença sobre a altura do muro que separava seus quintais. Agora ele estava ali sentado à mesa vendo sua mulher levar à boca uma colher com a água do arroz, provando o sal. Ela percebeu que ele estava meio nervoso, sentado à mesa, dobrando e desdobrando um guardanapo, respirando fundo quando olhava pela janela por cima da parte do muro que ficava atrás da goiabeira com frutos comidos por passarinhos.
Alguns minutos depois, ela pôs a salada de alface com fatias de tomate sobre a mesa, olhando firme pra ele enquanto jogava o pano de prato nos ombros. Ele tampava e destampava a garrafa térmica decorada com quadriculados de azul, amarelo e branco. “Vamos orar antes de comer?”, propôs a patroa. Ele concordou com a cabeça e ela esticou o braço pegando uma Bíblia aberta em cima da bancada de granitina, perto do filtro de barro. Propositalmente, ela passou algumas páginas até encontrar a oração do Pai Nosso. Estendeu a ele a Bíblia apontando o texto com o indicador, sinalizando o que ele deveria ler.
Ele ficou de pé, ajeitou os óculos, pigarreou e começou: “Pai Nosso que estás no céu…”, disse quase soletrando. Quando terminou a frase “Perdoai as nossas dívidas assim como perdoamos os nossos devedores” ele travou por um instante. Silêncio na cozinha. Comida no fogão esperando. Nenhuma palavra da mulher que levantou os olhos e o fitou. Olhares se encontram e parecem dizer um ao outro o que aquele texto representava. Havia algo acontecendo dentro dele, como se sentisse envergonhado, constrangido.
Ele terminou a leitura, se sentou e comeu devagar. Durante o almoço, ela ainda puxou assunto sobre o preço do feijão e sobre outras amenidades, mas ele estava lacônico. Antes de levantar da mesa pra assistir o programa esportivo na TV, ele olhou pro teto, cerrou os lábios, meneou a cabeça positivamente e saiu. Ela estava na pia com um prato ensaboado nas mãos, olhando de soslaio para o marido e movendo os lábios em silêncio, como se orasse de forma que ele não percebesse.
Alguns dias depois ele voltava da fazenda fazendo um poeirão daqueles, serpenteando sua pick-up morro acima. De repente avistou um carro quebrado à beira da estrada e um homem enfiado debaixo do capô, como se tentasse consertar sozinho. Não deu pra parar ou não quis fazê-lo ao perceber que era o seu vizinho, aquele mesmo encrenqueiro do muro baixo, que foi inevitavelmente coberto pela nuvem densa de poeira.
Bastaram algumas dezenas de metros à frente pra frear a camionete, engatar a marcha-ré e retornar devagarinho, sendo também envolto pela nuvem de poeira que ainda se dissipava. Estacionou e desceu. O vizinho surpreso com a ajuda inesperada engoliu em seco. “Eu acho que sei o que é”, disse pegando uma caixa de ferramentas na carroceria, sem fitar o “inimigo” diretamente, tímido e ranzinza que também era.
“Tive um carro desses há muitos anos e ele sempre me deixava na mão”, completou sua fala. O vizinho deu uns dois passos para trás e ficou observando a quem ele chamava de brutamontes, que agora gentilmente oferece ajuda e… de quebra, resolve o problema.
Capô baixado, aperto de mãos, despedida formal, pick-up comendo estrada novamente. O que aconteceu naqueles poucos metros entre um carro à beira da estrada e uma freada brusca de uma pick-up que volta para prestar socorro, ninguém vai saber.
Uma coisa é inegável: foi um processo que começou naquele almoço. Quem quer ter os pecados perdoados precisa perdoar. Ele parece ter começado a aprender que se deve tratar os outros como espera ser tratado por Deus.
Dentre tantos milagres que acontecem, os mais poderosos são aqueles que acontecem no coração. Mais importante do que muros que nos dividem, são as demolições dos muros que nos impedem de amar, algo que só é possível com a força do perdão.