Quem tem medo de assombração?

imagem: envato

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Durante o dia ninguém continha a meninada travessa solta naquela imensidão de quintal, com córregos para banhos a algumas centenas de metros de distância da sede da fazenda e cavalos a correr pelos pastos, às vezes com um moleque chacoalhando em seu pelo, seguro apenas pela crina. À luz do dia tudo parecia mais fácil de resolver. Qualquer queda do galho do pé de manga ou de um balanço, talvez um corte no pé em cacos de vidros escondidos na densa grama, ou mesmo um esfolado no joelho no cascalho durante uma corrida atrás dos bezerros no curral, era possível socorrer a tempo.

Durante o dia, tentar vigiar os peraltas de longe, em meio aos gritos de “para com isso”, vindos de um adulto na janela, parecia uma tarefa menos penosa. À noite é que o bicho pegava, ou melhor, a velha senhora dizia pegar, se a cambada não se recolhesse, tão logo a bruma da noite caísse pesadamente sobre aqueles rincões isolados do mundo.

Como segurar aquela turma eufórica correndo atrás de vagalumes para aprisionar nos vidros, ou de cigarras para prender nas caixas de fósforos? Convencer a meninada de que brincar com tições de fogo da fogueira improvisada induzia a fazer ‘pipi’ na cama, já não funcionava há tempos. Era piscar os olhos e lá iam eles brincar de pique esconde aproveitando apenas o pequeno clarão que o lampião da sala projetava sobre a grama de frente ao casarão. Claro! Diziam eles, à noite a gente se esconde e ninguém acha, falavam se atropelando nas explicações, quando alguém pedia pra justificar o porquê de não fazerem isso enquanto ainda brilhasse o sol.

O jeito era apelar para as histórias de assombrações para tentar aplacar o entusiasmo dos netos em plenas férias de janeiro, decidia a idosa matriarca, num tempo em que “trauma” era palavra quase desconhecida. Quando chovia a noite naquele verão intenso era um alívio, pois todos iam pra cama cedo, pra dormir escutando os pingos da chuva no telhado. Quando não, eles ora ficavam refestelados nos grandes bancos de madeira junto à escada da ampla cozinha, ora debruçados na extensa mesa de refeições, enquanto os pequeninos se ajeitavam no colo das mães para  cochilar em paz.

A idosa senhora se ajeitava no rabo do fogão a lenha e o silêncio da noite só era quebrado pelo coaxar dos sapos lá fora, pelo zumbido das cigarras, pelo relinchar dos cavalos no pasto, pelos latidos dos cães junto à porteira ou pelos sons do vento no canavial. Tudo parecia criar um clima perfeito, um pano de fundo ideal para as histórias que ela contava. Um dia falava de um barulho que surgia como tambores em marcha, se aproximando da casa até sumir nos cupinzeiros perto do curral. Noutra feita, era o choro de crianças na porta da casa pelas altas madrugadas chuvosas, sem que ninguém tivesse coragem pra abrir a porta e acolher quem quer que fosse.

Numa dessas histórias tenebrosas, uma mão negra e peluda assava uma espiga de milho num espeto nas brasas do fogão, sem que ninguém visse o corpo do tal “coisa ruim”. Um dos relatos mais horripilantes era do engenho que girava sozinho na madrugada enluarada e das rodas de fiar lã, que continuavam rodando sozinhas depois que a velha senhora ia dormir cansada de seus afazeres.

Os olhos atônitos da criançada pareciam petrificados e qualquer barulho estranho do lado de fora da casa, mesmo com as portas travadas pelas taramelas, representava um instante de pânico e frio na espinha. Coincidentemente, tudo acontecia à noite! Justamente na hora de aproveitar a luz da lua pra inventar maneiras de prolongar as brincadeiras do extenso dia. Que curioso, não?  Como se não bastasse não dar sossego de dia, ainda não se aquietavam a noite? Resmungava a velha senhora às vezes ranzinza. Eu sei como dar um jeito nisso, pensava sozinha.

Quando já eram adultos, esses “causos” tenebrosos viravam piadas. Restavam os registros das reações desmedidas dos mais medrosos, num tempo em que “meme” era apenas um motivo de zombaria.

Para uma coisa serviram estas memórias: saber que tudo que é mau, perverso e amedrontador habita nas trevas. Quando existe luz, é possível enxergar com clareza e minimizar os riscos. Luz exala energia, trevas propaga o medo. Andar na luz é desfrutar da vida, tatear nas trevas é não se dar conta que o mal, o verdadeiro mal, está sempre à espreita da próxima vítima. Até hoje tem gente que acredita que aquelas histórias eram reais e ainda tem medo do escuro. Para outros, foi até um aprendizado, uma boa memória pra contar aos modernosos e tecnológicos netos, que choram de rir das histórias tão “sem noção”.

Pelo sim, pelo não, sempre fica a certeza que sempre haverá um amanhecer. Sempre romperá um novo dia, quando as trevas se dissipam, o choro desaparece, os barulhos amedrontadores se esvaem… e se torna possível aproveitar um pouco mais da vida, quando as misericórdias de Deus se renovam ao nascer do sol!

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