Quando o homem desceu da picape para abrir a porteira que dava acesso à fazenda, avistou o curral vazio e alguns bezerros espalhados pelo pasto verde ao lado. Já quase não havia orvalho molhando suas botinas e o aroma de estrume do gado pairava no ar quando ele se aproximou da porta de madeira da grande casa com antigas telhas coloniais e assoalho.
Ele sabia que a sua missão ali era quase inglória, pois, como técnico agrícola experiente na extensão rural, o serviço de orientação ao homem do campo, recebeu a incumbência de tentar convencer o velho fazendeiro turrão a mochar seus bezerros, pois era o único que resistia à prática, já adotada por todos os proprietários de sítios das redondezas.
Foi recebido com desconfiança. Depois dos cumprimentos, sorveu bons goles de café quente, do bule que parecia fumegar próximo às panelas de ferro no fogão à lenha. As chamas amareladas crepitavam lambendo os fundos do tacho de cobre onde fervia o leite para o preparo do doce. “Eu até imagino o que o Doutor veio fazer”, disse o velho fazendeiro, passando a palha de milho na língua para preparar o palheiro. “Vou logo adiantando que o Doutor perdeu seu tempo, pois não vou mochar a bezerrada”, completou o patrão.
O jovem profissional ainda tentou argumentar, explicando que a prática de impedir que os chifres crescessem nos bezerros através de uma cauterização era para garantir a segurança dos animais em caso de brigas, além de evitar aborrecimentos na hora das vacinações, no transporte em gaiolas… Que nada! O fazendeiro estava irredutível e já se mostrava bastante aborrecido com aquela conversa. “Muitos já vieram aqui”, disse assertivamente o fazendeiro. E prosseguiu: “já tentaram me dobrar na conversa e botei todo mundo pra correr. Agora vem o senhor com essa lenga-lenga outra vez”, disse caminhando para a porta, como se convidasse o moço para bater em retirada. “E tem mais uma coisa”, continuou o velho turrão, “se Deus fez com chifre é pra ficar com chifre. Se fosse pra não ter chifre, já nascia sem! A gente não pode mudar a natureza não, Doutor!”.
O jovem já tinha dado a batalha por perdida, mas foi convidado a ficar para o almoço, porque o velho queria desfazer aquela atmosfera hostil que se criou na discussão. Quebrando o gelo, chamou o velho fazendeiro para ver como estava o canavial no fundo do quintal, um que ele mesmo havia orientado no plantio. Na volta, se assentaram à beira da antiga bica-d’água feita de um grande tronco de madeira-de-lei.
O jovem, com sede, esticou o braço até a tábua de curar os queijos e pegou uma cuia feita com metade de uma cabaça para beber água da bica. Quando virou a vasilha no queijo, bebeu devagar, lento o suficiente para elaborar seu último argumento. “Engraçado, não é patrão? Deus não fez bica nem cuia, mas o Senhor foi inteligente, aproveitou o recurso, do tronco fez uma bica e da cabaça fez duas cuias!”, completou.
O velho deu uma baforada no palheiro, olhou a fumaça se esvaindo, olhou para o moço e deu uma risada meio sem graça. Uma nova prosa foi inevitável. O extensionista acabou passando o dia na fazenda.
Quando fechou a porteira atrás de si, o sol já descia no horizonte e ele sorriu satisfeito, ajeitando seu boné olhando pelo retrovisor. Todos os bezerros agora eram mochos e o fazendeiro finalmente foi convencido de que Deus deu ao homem o domínio sobre os animais, assim como sobre as árvores e cabaças.
Enquanto a picape serpenteava pelas estradas tortuosas no caminho de volta, o jovem técnico ligou o rádio e ouviu o finalzinho de uma fala que lhe soou oportuna: “A Bíblia diz que feliz é o homem que acha a sabedoria e obtém conhecimento”. Então, o moço repetiu para si mesmo: “Não é que é mesmo?”, concluiu em meio a um sorriso aliviado de quem tinha cumprido uma difícil missão.