Memórias de uma ovelha resgatada

imagem: envato

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Enquanto ajeito minha cabeça no dorso de uma grande ovelha que dorme ao meu lado sobre a palha macia, posso contemplar algumas estrelas cujo brilho não foi ofuscado pelo clarão do luar que banha todo o vale. Quase à porta de nosso redil, um cercado rústico onde nos abrigamos para passar a noite, posso ver a silhueta de meu pastor assentado numa pedra e seu cajado recostado. Ainda que estejamos protegidas, quase posso descrever seu olhar atento vagueando pelo sopé deste monte, sempre pronto a nos defender.

O nosso guardião, seu fiel cão de espessa pelagem marrom e branca, dorme agora exausto ao seu lado, depois de um dia intenso de trabalho. Estou aliviada e feliz, embora ainda sentindo um pouco a dor de um ferimento na pata dianteira, agora devidamente tratada e firme. Eu preciso te contar o que aconteceu…

Minhas peripécias começaram ontem à tarde quando, distraída e talvez um tanto rebelde que sou, me afastei do rebanho atraída por alguns trevos que me pareceram bem apetitosos. Não sei se você sabe, mas passamos quase o dia todo pastando, ainda mais com alimento abundante como aqui.

O sol estava escaldante e quando vi, estava sob a sombra de um pequeno arbusto que me pareceu bem aconchegante. Decidi descansar um pouquinho. Foi um breve cochilo, mas o suficiente para me desprender das outras ovelhas e me fazer perder de vista meu numeroso grupo. Fiquei atônita! Corri de um lado para o outro, mas tive a impressão de que, quanto mais eu tentava voltar ao bando, mais eu me afastava. Por fim me dei conta que estava totalmente perdida. Para complicar, nuvens negras se formavam no céu e um vento começou a soprar forte ao lado da montanha, naquele fim de tarde quando o sol declinava. Na minha busca, quase caí em um desfiladeiro.

No ímpeto me frear, feri minha pata em um seixo partido. Minha lã estava toda pontilhada de impurezas e o medo intenso começou a me dominar. Parece que a noite ia chegar mais cedo e nunca senti tanto pavor em toda minha pequena vida. O jeito era procurar um lugar para me esconder até que aquela tormenta passasse. O que eu temia aconteceu tão logo o manto negro da noite cobriu aquelas paragens: a chuva veio. Fui forçada a me espremer num canto de pedra e terra solta e passei a noite ali, a ouvir ao longe o uivo de cães selvagens e lobos que resolveram sair de suas tocas e procurar presas fáceis, tão logo a chuva passou. Eu estava sedenta e faminta, pois fui parar numa encosta onde não havia grama tenra para eu pastar. Tremi de frio quase a noite toda e não pude evitar que me molhasse e me enlameasse um bocado. As horas não passavam.

Senti uma pontada de alívio quando os primeiros raios de sol me despertavam do pequeno cochilo que me sobreveio depois de tanto cansaço, dor e angústia. Agora era tentar subir o mais alto que pudesse na montanha, para tentar avistar o rebanho ao qual eu pertencia, afinal, se existe uma coisa que as ovelhas fazem é enxergar muito bem, praticamente tudo à sua volta sem reverter o pescoço.

Enquanto caminhava trôpega por causa do ferimento, senti o barulho de alguém se aproximar. Temendo ser um sagaz predador ou mesmo um ladrão de rebanhos, tentei me esconder entre os galhos do arbusto mais próximo. Me enrosquei, fiquei presa entre pequenos cipós e espinhos. Não sei se foram lágrimas, mas tive a sensação de chorar de desespero. Foi apenas o que consegui sentir enquanto ouvi os passos se aproximarem…

De repente senti uma mão rude, mas delicada, me livrar de tudo que me afligia. Quando me dei conta, eu estava fitando o doce olhar de meu pastor, que me pegava no colo e me abraçava. Parecia que eu era a ovelha mais importante do mundo, a única, a preferida. Ele se assentou numa rocha e me colocou sobre seus joelhos. Tirou cuidadosamente todos os picões, carrapichos, grama seca e lama incrustrados na minha lã. Rasgou um pedaço de seu manto e fez um curativo em minha pata, removendo com o dedo e saliva quente toda a impureza que se acumulara ali. Me colocou sobre seus ombros, me segurando pelas patas com muito cuidado.

Perdida, eu estava totalmente vulnerável, mas ele sentiu minha falta e me buscou até me encontrar! Não demorou muito e, da visão privilegiada que agora eu tinha, pude enxergar ao longe o rebanho, guardado no campo pelo cão pastor. O meu gentil Pastor caminhou em silêncio e, ao nos levar de volta ao redil, preparou uma cama de palha seca sob o abrigo e lá me depositou com carinho, sob os olhos curiosos de minhas companheiras. Se afastou em silêncio, não sem antes dar uma conferida na atadura de meu ferimento. Ganhei um afago nas orelhas e ainda contemplei um sorriso satisfeito. Nunca me senti tão amada, tão amparada, tão especial.

Aquele explícito amor me fez esquecer por um momento tudo o que eu havia passado nas últimas horas e até mesmo a vergonha de ter sido tão displicente. Eu fiquei observando meu Pastor contando as ovelhas, uma a uma, sob o olhar atento do cão, que abanava a cauda e latia como se quisesse nos manter todas quietas para que ele não se confundisse.

Antes de pegar no sono hoje de manhã, após este resgate que salvou minha vida, pude ouvi-lo dizer ao cão em voz tranquila e alegre: todas as cem estão aqui! Não falta ninguém agora! Quando voltarmos para casa, vou reunir os amigos e festejar. Achei minha ovelha que havia se perdido!

Espera… eu preciso te perguntar uma coisa: você é uma ovelha? Consegue se colocar no meu lugar?

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