O sonho era daqueles que a gente tem quando dorme profundamente e consegue contar com detalhes por muito tempo e por muitas vezes, depois de tê-lo sonhado. Quando estiquei as pernas para alcançar os chinelos à beira da cama, a primeira coisa a fazer foi tentar alinhar os cabelos, sem me importar com o longo bocejo que parecia se traduzir num conselho: Volta pra cama, o sol nem saiu ainda! Fiquei sentado na cama olhando pra parede como se olhasse para um imenso vazio, enquanto tentava organizar a mente e as primeiras preocupações cotidianas que já se engalfinhavam na fila, querendo chamar minha atenção.
Depois de estender o cobre-leito em silêncio e ajeitar os travesseiros, contornei a cama e abri a veneziana. Nem os carros que passavam velozmente na avenida a alguns metros entre as árvores, nem os primeiros raios de sol que apontavam por detrás do bosque, e nem mesmo a brisa fresca da manhã conseguiram me entreter.
O sonho vinha à mente de forma nítida, como um roteiro de filme, um storyboard bem desenhado, uma sequência de pequenos detalhes que construíam uma narrativa coesa na minha cabeça. Eu pude descrever a cena toda: o pedreiro era um grande amigo meu e sorria alegremente segurando um tijolo, próximo a um monte de areia e uma pilha de outros tijolos que aguardavam o momento certo de virar paredes. Havia escavações por toda parte, estacas de madeira fincadas nos cantos e tábuas formando algumas caixas que receberiam o concreto.
Meu amigo contava empolgado que estava construindo uma casa grande, pois queria ter muitos filhos com sua futura esposa, mas ela não aparecia no cenário enevoado do sonho. Havia um pequeno monte de pedras e poucas barras de ferro por ali, um pouco espalhadas pelo canteiro de obras. Ele me guiava pela construção mostrando onde seriam os cômodos, entusiasmado.
Me lembro de olhar para a quantidade de pedras e perguntar: “estas pedras serão suficientes para o alicerce?”. Ele sorriu como um moleque travesso e respondeu: “não usarei apenas pedras”. Fazendo um gesto com a mão, ele me conduziu a um pequeno galpão a poucos metros da construção e abriu duas pesadas portas de ferro e alumínio. Havia um amontoado de pequenas toras de madeira que pareciam bastante resistentes, dispostas como se fosse lenha para um fogão caipira. “Vou completar com estas toras, que serão assentadas entre as pedras e o concreto”. Dessa forma, disse ele, parecendo convencido, “terei um gasto mínimo com as barras de ferro”. Foi nesse ponto do sonho que acordei. Foi como se o diretor do filme dissesse: Corta!
Depois da vigorosa ducha matinal, enquanto penteava os cabelos e dava um trato nos fios eriçados da barba, uma ideia me ocorreu: alcancei o smartphone na ponta da pia e o convidei para um café na padaria da esquina, antes de cada um ir para o seu lado pra atender as demandas do dia. Ele mora perto e não se atrasou.
Na ligação, eu disse que havia sonhado com ele, o qual, místico e encabulado que era, não hesitou em atender ao meu convite, num misto de curiosidade e preocupação. Ele franziu a testa diante do meu relato, enquanto fitava a leve bruma cinza que esvaía de sua xícara. “O que pode significar?” Perguntou. “Se puder, me diga, afinal, sabe como reverencio seus conselhos”, finalizou.
Ele se ajeitou na cadeira e me olhou nos olhos, pensativo e receptivo. Eu depositei minha xícara no pires, sorvi meu último naco de pão de queijo, dando o suspense necessário que a ocasião merecia. Não sei como você está construindo este relacionamento, que material está usando para alicerçá-lo, eu disse assertivo, mas cuidadosamente.
Se as bases forem sólidas, a construção resistirá ao tempo e às intempéries. Se usar algo que compromete a sua sustentabilidade, será como a madeira, que apodrece com o tempo e leva toda a edificação à ruína. Ele apenas me abraçou em silêncio e se foi.
Antes de deixar o estacionamento, baixou o vidro, acenou com a mão e me presenteou com um sorriso amarelo. Eu fiquei por um tempo rabiscando o verso da comanda, desenhando casinhas e pensando: um casamento não pode ser apenas eterno enquanto dure, precisa ter um alicerce seguro para garantir o “para sempre”.