O cisco e a trave

imagem: envato

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Enquanto o pregador falava, ela parecia absorver cada palavra com um olhar petrificado e caneta em punho. Anotava compulsivamente fazendo um movimento afirmativo de cabeça, em silêncio, alternando expressões de espanto e assertividade. Quando o sermão acabou, ela dobrou cuidadosamente o papel e o colocou dentro da Bíblia.

No dia seguinte, tão logo chegou ao trabalho pela manhã, depois dos efusivos cumprimentos de bom dia de porta em porta, ela se dirigiu a uma sala nos fundos, onde uma cabisbaixa moça abria gavetas e retirava papeis e agendas, colocando-os sobre a mesa. Parecia absorta em pensamentos quando a amiga simplesmente enfurnou sala adentro, se achando o próprio raio de sol que corta a nuvem num dia nublado.

Um cumprimento eufórico veio em seguida. Um sorriso meio sem graça o recebeu, mostrando educação e pouco entusiasmo naquela segunda-feira de rotina. “Amiga, você tinha que estar lá” –  disse a esfuziante visitante. “Era tudo pra você, até anotei” – disse estendendo uma folha dobrada à colega de trabalho que não parecia entender do que se tratava. “O sermão de ontem à noite na Igreja foi sob medida pra você, descrevia toda sua vida e tudo o que você tem passado!  Me prometa que vai ler e aplicar todos estes princípios? A sua vida vai mudar” – disse ensaiando uma saída, na direção do relógio de ponto fixado à parede no fim do corredor.

Um mês depois, as colegas de escritório comemoravam o aniversário de outra moça que enfrentava dias difíceis no casamento, no trabalho e nas finanças. Novamente, a eufórica e prestativa colega estava lá, parecendo aflita para entregar o seu presente, como se tivesse nas mãos uma chave que resolveria todos os problemas da amiga.

Tão logo a aniversariante desatou o laço que adornava o embrulho do presente, levantou os olhos e contemplou o sorriso exultante da amiga que dizia: “Este livro vai revolucionar a sua vida! Eu ganhei um exemplar no meu aniversário do ano passado, mas só recentemente praticamente o devorei em poucas horas. Coincidentemente, ele parece que foi escrito para você, pela vida que você tem levado. A aniversariante fez um gesto de aprovação e gratidão enquanto aguardava o próximo abraço da fila.

Durante aquela semana, enquanto se assentava para almoçar no restaurante coletivo da empresa, a senhora da recepção parecia estar triste e comovida, mexendo lentamente a comida no prato, totalmente desinteressada. A colega brotou sabe se lá de onde e se assentou a seu lado sem convite. Olha, disse quase tagarelando. “Eu vi uma produção cinematográfica no fim de semana passado e foi impossível não me lembrar da senhora e da multidão de problemas que têm batido à sua porta”. Tomou um guardanapo, anotou uma frase que parecia ser o título de um filme e colocou na mão da jovem senhora que, educadamente o guardou na bolsa que repousava na cadeira ao lado. “Não deixe de assistir hein? Depois me conta” – disse a sorridente moça se afastando para retornar ao batente.

Sexta-feira. Ônibus lotado para voltar para casa, trânsito infernal. Um rosto cansado e aparentemente frustrado tinha o olhar perdido, contemplando as pessoas que se acotovelavam por um espaço no corredor, estendendo a mão para segurar nas extremidades dos bancos ocupados. Tudo que vinha à mente daquela infeliz escriturária tão sorridente até algumas horas atrás, eram os atropelos em sua vida pessoal, as decepções nos relacionamentos, as dívidas que nunca cessavam, os problemas que se perenizavam.

Bem, posso viver uma vida caótica” – dizia para si mesma, “mas sou abençoadora e ótima conselheira: Tomara que as anotações daquele sermão abençoado toquem o coração daquela moça, o livro que dei de presente promova uma verdadeira mudança na vida da amiga aniversariante e o filme que indiquei seja um divisor de águas na vida daquela senhora”.

O ônibus se perdeu no emaranhado de carros e profusão de buzinas, farois acesos, fumaça e roncos de motores apressados. Algumas horas depois ela vai entrar na sua bolha, para sair apenas na manhã da próxima segunda-feira, quando veste a roupa da personagem feliz e realizada, disfarçando a trave na sua mente e vendo no cisco do outro a oportunidade de se comportar como realmente gostaria e precisaria ser.

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Fátima Maria Oliveira
Fátima Maria Oliveira
9 dias atrás

Gostei. Vou ler de novo!

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