O encontro de um andarilho quase errante com um anjo desconfiado

Eu estava faminto e já cansado. No início do dia, fui praticamente enxotado da calçada do posto de gasolina onde eu havia despertado no fim da noite anterior, depois de um vigilante me entregar seu pedaço de pão amanhecido, como se alimentasse um mendigo qualquer.

Depois de caminhar por quase duas dezenas de quilômetros naquela manhã sob o sol que já subia sem trégua no claríssimo céu sem nuvens, eu continuava pelo acostamento, ouvindo o som de meus próprios passos e o zunido dos carros que passam nas duas direções da pista.

A massa de ar que se deslocava dos veículos que passavam em alta velocidade podia até tentar me jogar para o capim rasteiro das margens, mas também parecia aliviar o calor e secar minha fronte suada, por vezes inclinada com olhar fixo no chão de cascalho ralo, por vezes fitando a imensidão e o horizonte à minha frente.

Um dos meus poucos alívios na jornada eram as grandes ladeiras morro abaixo, recompensas pelo esforço nos extensos trechos morro acima, quase sempre com sol a pino. Já eram quase onze da manhã quando uma pick-up branca dessas modernas, parou cerca de duzentos metros à minha frente, no acostamento, como se me esperasse aproximar. Dito e certo.

O motorista, um senhor de meia idade de barba curta e grisalha, baixou o vidro lateral e me ofereceu carona. “Tem certeza?”, perguntei.  “Estou sem banho há dias e ainda tomei chuva pelo caminho”, eu disse, tentando ser simpático. Ele diminuiu o volume do som, deu uma risada leve e fez menção com a cabeça me convidando a entrar.

Logo estávamos na maior prosa, enquanto sua camionete parecia deslizar pelo asfalto com a música country fazendo o fundo musical de minha agradável viagem em ambiente confortável e ar condicionado. Depois de algumas perguntas do tipo “de onde vem” e “pra onde vai”, achei que seria bom mostrar meus combalidos documentos, para que ele se sentisse mais confiante, pois dar carona a um andarilho não só era coisa raríssima, como também um ato temerário em dias de tanta violência.

Ele pareceu mais interessado em minha história, mas se mostrou atento. Eu contei que vinha do Pará e estava cruzando Tocantins e Goiás e ia para Minas Gerais, atrás de uma promessa de emprego num frigorífico em uma grande cidade. Isso a maior parte do tempo a pé, pois quando consegui carona, foi chacoalhando na carroceria de algum caminhão, com dinheiro guardado apenas para comer.

Quando abri o bolso da velha mochila preta de nylon, ele pareceu apreensivo, com um olho na estrada e outro no meu gesto. “Quero te mostrar uma coisa”, eu disse. Ele diminuiu a velocidade e percebi, de relance, um certo medo em seu olhar. Quando saquei minha pequena espada, digo, minha pequena Bíblia, ele sorriu parecendo aliviado, colocando as duas mãos no volante, voltando a acelerar.

Eu falei que aquela era minha única companhia, mesmo estando toda surrada e rabiscada com lápis de cor. Dentro dela estava uma foto da patroa e dos meus filhos pequenos, usadas como marcador de páginas.  “Quando tenho que dormir na beira da estrada, armo minha rede em algum lugar, ilumino esse tesouro com uma pequena lanterna pra ler alguma passagem, e depois só resta admirar o céu estrelado, antes de fazer as minhas preces e adormecer”, contei. Quando eu disse isso, ele pareceu se emocionar.

“E quando chove?”, ele perguntou franzindo o cenho, parecendo um menino curioso. “Bem, tenho que recobrir o máximo com as beiradas da rede e sentir os pingos d’água se chocarem contra o casulo”, respondi dando uma gargalhada. “Debaixo de uma árvore pelo menos não fico encharcado”, completei. “Se houverem raios e trovões, procuro um lugar para me abrigar”, finalizei.

Falei da minha família que deixei no Norte, de um filho que tinha sumido pelo Mato Grosso atrás do sonho de bamburrar num garimpo, das minhas andanças, da minha fé… e, claro, da minha fome! Ele me falou pouco sobre ele, apenas o suficiente para manter um certo anonimato, pensei.

Quando chegamos à sua cidade, a mais de cem quilômetros do nosso local de encontro, ele não foi pra casa. “Puxa, você antecipou minha chegada em mais de uma semana”, eu disse contente, como forma de agradecimento. Ele sorriu e dirigiu direto até um restaurante popular da cidade. Um senhor com cara de poucos amigos veio até a porta com um pano de prato jogado aos ombros e, sendo grosseiro, não permitiu que eu entrasse, pensando se tratar de um maltrapilho.

Meu novo amigo me pediu para que me sentasse na mesa que estava na calçada, ao lado de sua camionete estacionada, enquanto me fazia um belo prato perguntando o que eu gostava de comer. Ele ainda me concedeu o prazer de escolher o refrigerante que eu mais gostava. Ficou comigo um pouco à mesa sob o olhar reprovador de alguns clientes e, antes de ir embora, abriu a carteira e colocou uma nota generosa no meu bolso. Apertou minha mão, me abençoou e se foi.

Eu continuei minha jornada por quase dois meses, mas aquele trecho foi, sem dúvida, o mais marcante e feliz da minha vida. Outro dia eu li na minha pequena Bíblia que Deus envia anjos pra cuidar da gente. Não sei se foi o caso, só digo que ele ganhou um grande intercessor!

Pr. Anibal Filho

Doutor em Produção Vegetal pela UFG e Pastor auxiliar da Igreja Batista Renascer.

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