Do alto do telhado, caminhando cuidadosamente pela calha de zinco posicionada na confluência de duas inclinações convergentes, ele contemplava o vento a agitar as folhas do cajueiro, cujos frondosos galhos se debruçam sobre as telhas, como alguém cujos braços descansam sobre uma mesa ao reclinar a cabeça cansada.
Olhando em volta, dava pra contemplar os telhados vizinhos, árvores frondosas, coqueiros, mangueiras, ruas adjacentes. Grande parte da extensão da calha de mais de dez metros de comprimento estava tomada por folhas secas do cajueiro, além de frutos ressecados, castanhas enegrecidas.
Boa quantidade de folhas se prendiam sob as telhas, certamente incrustadas pelos ventos após se desprenderem dos galhos preguiçosos. O cenário na cozinha abaixo dos telhados era devastador, por causa do grande volume de água da tempestade da noite anterior. A água que escorreu pelas telhas, não conseguindo se escoar pela calha abarrotada de folhas secas do cajueiro, encontrou um jeito de se acumular, subir pelas laterais da calha e descer pela parede da cozinha, inundando o forro e se esvaindo até acumular no piso, o qual parecia ter recebido uma enchente de água suja e poluída.
Enquanto recolhia as folhas em sacos de lixo e desobstruía toda a calha para esperar a próxima chuva, seu pensamento fluiu tanto como a água impetuosa, incontrolável. Quando se deitou sobre as telhas e se dependurou no telhado para cortar os galhos do cajueiro com autorização do vizinho, constrangido pelo estrago que seu frondoso cajueiro havia causado, os seus pensamentos continuavam a fluir livremente.
O cajueiro não tinha culpa nenhuma, só estava sendo árvore frutífera, cumprindo seu propósito. O vizinho até poderia prever, se tivesse tempo pra observar entre tantas árvores de seu quintal, para onde aqueles galhos estavam “fugindo” e impedi-los de invadir o quintal alheio. As folhas secas já estavam mortas mesmo, o vento que se encarregasse de providenciar um lugar para elas virarem adubo, mas a calha próxima parecia uma sepultura muito bem preparada e convidativa.
A culpa foi minha, ponderou. O estrago bem que poderia ter sido evitado, se o cuidado com sua própria casa tivesse sido menos displicente. Uma manutenção preventiva, uma boa conversa com o vizinho, um olhar mais cuidadoso sobre o que acontece à volta, tudo isso lhe vinha à mente, como se o vento soprasse em seus ouvidos.
De pé, se movimentando cuidadosamente agora sobre as telhas cerâmicas para não aumentar ainda mais o prejuízo, se dirige à extensa escada de aço que o levou às alturas. Trabalho concluído. Calha desobstruída, cajueiro podado, telhado livre de folhas presas que poderiam causar um novo estrago… e o pensamento ainda solto, provocativo.
Quantas vezes na vida, de forma displicente, permitimos que nossos canais de comunicação, de afeto e de amor sejam obstruídos por lixo que vai se acumulando lenta, silenciosa e progressivamente, sem que nos demos conta. Quando vem uma tempestade (… e cedo ou tarde elas sempre vem), ficamos surpresos com nossas reações e nossos impulsos, respingando em tudo e todos à nossa volta, por pura falta de autoanálise periódica, senso crítico e até humildade.
Reparar os danos é sempre mais custoso, contabilizar os prejuízos é sempre mais doloroso. Ainda que prevenir seja melhor que remediar, nem sempre o remédio resolve. Quando a tempestade chegar, melhor que suas caudalosas águas encontrem um ambiente preparado para receber seus impactos, para que não se faça transbordar de modo a trazer prejuízos a quem está por perto.
Com certeza, na próxima vez que raios e trovões abalarem os céus daquela casa nas altas madrugadas, haverá um sorriso maroto e tranquilo rente ao travesseiro, e os ouvidos ainda vão aproveitar o barulho dos pingos da chuva na telha pra dormir melhor. Logo será novo dia, bom pra levantar cedinho, coar aquele aromático café e sorvê-lo olhando para o forro novinho em folha, numa cozinha limpa e sequinha como precisa sempre ser!