O que restou da criança em mim?

imagem: envato

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Estou fitando, em silêncio, uma foto em preto e branco que mostra um menino de dócil aparência e olhar expressivo, confortavelmente acomodado em uma poltrona de couro com aconchegantes apoios de braço, onde ele apoia a sua frágil mãozinha. Meu pensamento faz conjecturas. Ali está uma mente pura, inocente, com apenas um ano de idade e nenhuma maldade concebida, nenhuma rebeldia instaurada, vida toda pela frente.

Quase posso vê-lo caminhando em passos rápidos, bem agasalhado do frio, para se enfurnar na escola pública no sopé da montanha, onde gostava de cantar no coral. “Quero ser um religioso, mamãe! ” Disse certo dia, depois de se apresentar todo garboso com o coral, do alto de seus oito aninhos já bem movimentados. Era confiável e extrovertido lá pelos idos da virada do século, mas a morte de seu irmãozinho vitimado pelo sarampo foi o primeiro grande impacto em sua alma esperta e observadora. Parecia que uma espécie de revolta começou a brotar em seu coração ainda tão promissor.

Taciturno, suas poucas palavras na adolescência mal expressavam uma certa insatisfação. Parecia que o inverno de fora esfriava o já não tão aquecido coração, que por vezes parecia sombrio e melancólico. Onde estava o pequeno cantor do coral? O que aconteceu com o projeto missionário? Onde está aquele olhar vibrante da foto de um aninho? Eram perguntas que a sua mãe fazia quando perdia o sono, consumida pela tristeza de ver fluir uma rebeldia estranha, que o levava a contrapor o pai em quase tudo, além de fazer seus professores o olharem já com certo receio.

O garoto é um artista, canta, desenha bem”, dizia a mãe ao velho pai turrão, “deixa esse menino viver seu sonho”, insistia. O pequeno rapaz começou a cultivar um espírito estrategista. Ser malsucedido propositalmente na escola, foi a forma que encontrou de “provar” ao velho que a escola técnica não era a sua veia, crente que a escola de artes lhe reservaria uma vaga. Não funcionou. Recolheu-se. Frustrou-se.

Por outro lado, algo nele orgulhava o pai: o filho era um patriota. Suas ideias nacionalistas pareciam brotar no peito desde que se entendia por gente, motivado sabe-se Deus pelo quê. Com a morte do pai, ele forçou a barra na escola, indo ladeira abaixo, levando a mãe a permiti-lo abandonar os estudos.

Então, veio a boemia, torrando o dinheiro da pensão do pai e dos caraminguás que lucrava com as telas que pintava e vendia pelas ruas. A Escola de Artes o rejeitou, alegando que as suas pinturas eram infantis e que o seu talento era duvidoso. Com a mãe morta alguns anos depois, sem dinheiro e duplamente órfão, foi morar num abrigo para sem-tetos. Pronto! Foi o celeiro das ideologias, a verdadeira efervescência da rebeldia e das más influências, vivendo numa cidade racista e preconceituosa.

Com avidez para a literatura ultranacionalista e humanista, desenvolveu, por influência de seus mentores, antipatia por certos grupos e raças, mergulhou na filosofia influente da época e fugiu para longe, para não servir a um exército que considerava altamente miscigenado e, por isso, inadequado.

Em outro exército para o qual se alistou quase ilegalmente, recebeu condecorações por seus feitos militares e, para cultivar sua identidade de artista, ilustrava o jornal do exército. Era um oficial elogiado pela bravura e este perfil, associado ao seu patriotismo exacerbado, lhe garantiu o destaque que precisava.

Seu país, humilhado pelos vencedores da grande guerra e economicamente devastado, foi o perfeito cenário para construir um discurso inflamado que o catapultou ao estrelato e à liderança. Sobretudo, também por força de suas ideologias, frustrações, revoltas e preconceitos, cunhou um discurso político hipnótico e manipulador, que levou uma grande massa de admiradores à euforia que, por vários minutos, a plenos pulmões, com lágrimas nos olhos e de  braço estendido, gritava: “Salve a vitória! Salve Hitler! ” O resto da história o mundo inteiro conhece bem!

Migrei o meu olhar para uma segunda foto agora e continuo em silêncio. Um senhor de rosto austero, terno e gravata, bigode indefectível, quepe e pose de general vitorioso, ilustrando um jornal que noticiava sua morte por suicídio, sendo seguido pelos seus leais comandantes. Histórias de horror inimagináveis sob seu comando e ordem. Fatos que o mundo jamais esquecerá!

Volto os olhos para a foto da criança indefesa e frágil, esperando o retorno para os braços da mãe. Minha mente divaga e me pergunto: O que poderia ter sido diferente? Que influências deveria ter evitado? Qual a suposta “culpa” de quem o educou? Quem se omitiu da missão de intervir antes que fosse tarde? Qual o peso de suas frustrações e traumas? Milhares de perguntas podem ser feitas, mas, certamente, pouquíssimas poderiam ser respondidas.

Algumas certezas, porém, me vêm à mente: o bem e o mal não rotulam os bebês na maternidade, mas a fraqueza humana, consequência de sua natureza pecaminosa e tendenciosa à rebeldia, só precisa encontrar um ambiente fértil, um empurrãozinho aqui outro ali. Jesus disse que para entrarmos em Seu Reino, deveríamos nos tornar como crianças, o mais possível afastados de toda e qualquer influência que nos distancie do protótipo original.

Reviro uma gaveta e encontro uma foto minha da tenra infância. Olho para os meus próprios inocentes olhos e pergunto em meio a um sorriso sem graça: você ainda mora em mim? Onde está sua pureza e inocência? O que foram feitos dos seus sonhos? Em seguida, me olho no espelho e me pergunto em alto e bom som: o que você tem feito para que essa história jamais se repita envolvendo uma criança sob sua zona de influência?

Continuo por aqui com as fotos nas mãos, tentando formar uma resposta…

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