Uma fábula sobre chegar mais longe…

imagem: envato

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Quando eu cruzei a rua em frente à casa de número setenta e quatro, avistei um rapaz de uns vinte e poucos anos sentado no chão junto à parede, abraçando os joelhos dobrados e com o olhar perdido, contemplando o vazio dos cômodos. Sacudi minhas páginas para ajustar as dobras. A casa me convidou a entrar. Foi só cruzar o alpendre inacabado e adentrar à sala para perceber que o rapaz não estava sozinho. Havia um coelho no canto da sala e um carro velho e empoeirado na garagem próxima ao muro. Ele parecia ter os faróis caídos e tristes, como dois olhos decepcionados.

Quando pensei ter mapeado todo o cenário, uma tartaruga apontou a cabeça no corredor e caminhou vagarosamente até o centro da sala. De repente, eu era o centro das atenções. A casa sussurrou em meus ouvidos curiosos com toda aquela consternação coletiva: “Estamos aqui, porque parece que temos algo em comum: a frustração. Eu por exemplo, tinha tudo para estar finalizada e contente, com moradores até. O projeto da construtora era construir cem casas populares, mas parou em mim. Não houve incentivo, interesse, demanda. Fiquei pelas metades, sequer sei se ainda serei concluída e decorada”.

Bem, eu disse: “Realmente, tudo depende de um propósito, de um investimento, de uma vontade. Se a sua construtora tivesse tido acesso às minhas páginas, certamente leria coisas que a motivaria a perseverar na execução do projeto. Parece que cheguei tarde por aqui…”

De repente o rapaz, descansando o queixo sobre os joelhos dobrados, começou a balbuciar algumas palavras desanimadas. “Meu objetivo era ganhar os cem metros rasos. Quando estava quase na curva final da pista, minha atenção se voltou para a torcida. Me distraí com um olhar que parecia torcer contra mim. Desconcentrei, tropecei, caí e vi os outros concorrentes avançarem em suas pistas. Fui desclassificado”.

“Puxa” – respondi com pena. “Se seu treinador tivesse acessado, ainda que a minha versão eletrônica, teria encontrado conselhos práticos que lhe ajudariam a manter o foco, se fortalecer e perseverar na corrida, superar os seus limites, não se intimidar com os agoureiros, para, quem sabe, subir ao pódio ao final da competição”.

A tartaruga, prestando atenção na conversa, disse ironicamente: “Eu já participei de uma corrida ao lado daquele coelho ali e venci. Talvez vocês até conheçam a minha história. Eu posso viver até mais de cem anos e poderia ainda vencer muitos desafios. Acontece que ninguém mais acredita em mim, nem eu própria. Me sinto cansada e desmotivada. Eu ainda viveria algumas décadas, mas me sinto esgotada, desinteressada da vida, talvez até deprimida”.

Olhe só pra você” – me virei pra tartaruga e só consegui dizer: “Se você e seus tutores conhecessem as minhas palavras e histórias, aquelas que trago impregnadas nas minhas páginas, certamente conheceria o valor da honra, da coragem, da ousadia. Quem me conhece e bebe das minhas fontes já encontrou muito sentido e força pra continuar. Fico pensando em como eu poderia ainda te ajudar”.

“Ajuda?” – Resmungou o coelho espirrando e passando as patas nas narinas. “Quem me dera…” lamentou. “Eu posso viver até cem meses, mas não chego a oitenta. Estou doente, praticamente com os meses contados. Não tive ajuda com meus traumas e sustos nas jornadas pelas florestas e estou condenado a durar pouco tempo”.

“Eu poderia ter te ajudado”, disse eu lamentando a sorte do coelho. “Já divulguei muitas orientações de saúde, falei sobre como superar traumas, encontrar proteção e refúgio. Uma pena que você não tenha tido alguém para recitar meus parágrafos para você, o que certamente teria te ajudado a superar muita coisa!”

“Ler?” –  Tossiu o carro na garagem. “Meus faróis sequer iluminam, meu motor se fundiu antes de chegar a cem mil quilômetros. Fui malcuidado, desprezado e hoje apenas sirvo pra me acabar num ferro velho, como sucata que já me sinto”.

“Puxa, como isto é lamentável” –  eu respondi. “Quantas vezes falei sobre amor, sobre ser útil, sobre restauração e sobre servir. Se seu dono tivesse me encontrado em algum estabelecimento e prestado atenção nas minhas frases e textos, certamente teria te ensinado a buzinar por ajuda, a externar seus sinais de pedidos de socorro”.

De repente a casa, o coelho, a tartaruga e o carro se voltaram para mim como se quisessem perguntar alguma coisa, como se tivessem combinado de fazê-lo juntos. Foi quando o rapaz se levantou e tomou a dianteira: “Afinal de contas, quem é você? Parece ter as respostas certas! Quem escreveu suas páginas que deveríamos ter lido e aprendido tanta coisa? Pode se revelar?”.

“Muito bem, desculpem não ter me apresentado antes. Eu estou aqui porque tenho um propósito de existir. As pessoas responsáveis por meus textos imprimiram em minhas páginas as suas experiências, seus casos de sucesso, suas receitas de plenitude. Também já enfrentei percalços, mas só cheguei até aqui porque tenho sido tratada como um instrumento de edificação de vidas e por isto, mantida e renovada com amor. Graças a eles, eu perseverei e espero chegar bem mais longe impactando as vidas que se abrirem para meu conteúdo! Talvez vocês estejam frustrados, porque lhes falta o senso de importância e desígnio que tenho experimentado, o senso de utilidade e o caráter abençoador da minha existência. Senhoras e senhores, muito prazer, sou a centésima edição da Revista Renascer!”

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