Quem te conhece, que te compre!

Ele se levantava quando o dia estava amanhecendo pra varrer a calçada, enquanto ela passeava pela cozinha, procurando a caixinha de fósforos para acender o fogão à lenha. O rádio de pilhas sobre a mesa chiava baixinho canções de louvor. Uma bandeja decorada com um versículo bíblico, coberta com forro de crochê, esperava que as xícaras verdes esmaltadas e lascadas se enchessem de café, cujo aroma logo inebriaria toda a casa.

Fogo aceso, ela leva as mãos à cintura, com olhar perdido pela janela que dava para o quintal onde o pequeno milharal já estava quase em ponto de pamonha. Ele entrava, como num ritual ensaiado, abria a torneira do filtro de barro, prestando atenção para a água fria e cristalina não exceder as bordas do copo de alumínio.

“Eles já foram trabalhar, meu velho?” – Indagou ela se virando e ajeitando a gola da camisa do seu companheiro de mais de sessenta anos de bodas. “Sim, saíram apressados parecendo que estavam fugindo da polícia”, resmungou ele. “Vai ver estavam mesmo”, ironizou ela. Foi assim que eles se referiram ao casal de jovens que se mudaram para a casa ao lado há quase dois anos.

Eles quase não se falavam, pois temiam que o casal os destratasse, já que ficaram sabendo que eles não gostavam de cristãos. Eram ateus, comunistas e revolucionários. Pelo menos foi o que ouviram no dia em que eles discutiram com a vizinha da casa da frente, que tentava, por vezes, apresentar-lhes o Evangelho.

Eles mesmo nunca ousaram pregar, apenas preparavam o terreno, como combinaram. “Um dia a gente lhes mostra o caminho” – diziam.  Mas, sempre que os “rebeldes” precisavam de alguma coisa, era dos velhinhos que se lembravam. Um pouco de açúcar um dia, um chá de ervas medicinais em outro, visitas diárias para alimentar os gatos quando eles viajavam para participar dos Congressos de Estudantes, um prato de pamonhas quentinhas por cima do muro, uma coisinha aqui, outra ali.

Nunca pediam conselhos, mas sentiam que demonstravam afeto por eles, ainda que por vezes pensassem que era por interesse. Os velhinhos oravam toda noite pela conversão dos vizinhos esquisitos e pediam pra Deus dar sabedoria para a vizinha missionária, pois era a única que tinha coragem de confrontá-los.

O tempo foi passando e, num belo dia, veio a notícia da gravidez. Longe da família e sem conhecidos naquela cidade universitária, a jovem se sentiu desamparada quando lhe faltou companhia e cuidados. A boa velhinha estava sempre presente, atenciosa e servil. Foi um parto difícil em casa, natural como a jovem mãe disse que tinha que ser. O pai era um jovem um tanto quanto desnorteado, meio maluco, como o velhinho sempre o rotulava. Todas as manhãs, desde o final da gravidez, a boa vizinha preparava café com quitandas e levava. Naquela época se lavava e se estendia no varal as fraldas, os cueiros e as mantas. Nada era descartável. O varal parecia um fio com bandeirolas tremulando ao vento. A bondosa senhora cuidava bem destes detalhes!

Então, chegou o dia da conversa difícil. A boa velhinha teve um sonho perturbador sobre o casal de vizinhos ripongos e “rebeldes”. Gastou um tempo da madrugada pedindo a Deus que amolecesse aqueles corações empedernidos quando ela fosse evangelizá-los. Bem cedo, café à mesa, ela disse ao marido em tom resoluto: “Não posso deixar de pregar. Eu preciso pelo menos perguntar” – disse. Ele coçou a barba e apenas disse que ela deveria ter muita sabedoria.

Enquanto colocava as quitandas sobre a mesinha improvisada junto à cama, ela percebeu que a moça parecia angustiada, olhos lacrimejantes, embalando a criança que resmungava no colo. Ela tomou a criança nos braços, depositou carinhosamente no berço ao lado e o bebê pareceu agradecer pelo aconchego. O pai estava ainda de pijamas, sentado numa cadeira ao lado da cama, afagando os cabelos da esposa em silêncio. Ela se sentou na cama, tomou a mão daquela que mais parecia uma criança assustada e indefesa, respirou fundo e disse:

“Meus filhos, todo esse tempo próximos a vocês e nunca tive a oportunidade de conversar com vocês sobre fé”. Os jovens se entreolharam por um instante, mas não demonstraram recusa. Ela falou por alguns minutos sobre a necessidade de um Salvador, escolhendo as palavras e com a cabeça baixa. Quando ela ergueu os olhos, viu aqueles pares de olhos que estavam ávidos, petrificados.

Ela parou e decidiu disparar a pergunta que havia ensaiado: “Vocês querem entregar suas vidas a Jesus? ” Eles se entreolharam por algum tempo, como se já tivessem conversado sobre o assunto entre si.  “Não conhecemos esse Jesus” – disse o rapaz sem pestanejar. “Mas…” continuou ele, quase no meio de um sorriso tímido, ajudado quase em uníssono por ela: “Se Ele for igual a você e ao seu marido, queremos saber tudo a respeito d’Ele! ”

Pr. Anibal Filho

Doutor em Produção Vegetal pela UFG e Pastor auxiliar da Igreja Batista Renascer.

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