A tinta de Deus

Enquanto eu misturo a tinta para tecidos na água já quase abrindo fervura, vejo o azul intenso cobrindo todo o fundo do tacho de alumínio, minha mente vagueia pela infância sofrida, ao lembrar da minha mãe tingindo as linhas para fabricar as cobertas de algodão e lã, que hoje repousam quase esquecidas em uma grande caixa de enxoval, no quarto dos fundos.

O fogareiro era uma grande lata de tinta vazia, com quase todo o espaço interno preenchido com serragem bem prensada com os pés, deixando ao meio o cilindro vertical e outro horizontal na base. Na entrada para lenha, espaços antes ocupados por garrafas que eram retiradas quando a serragem estava firme.

Este era o canal por onde as chamas vibrantes subiam e lambiam o fundo do tacho com água fervente e linhas sem cor, imersas na calda colorida!  Lembro de minha mãe se aproximando do fogareiro aceso, limpando o suor da testa com as costas de uma mão, enquanto ajeitava a lenha com outra. Ela curvava um pouco o rosto e olhava de soslaio apertando seus pequenos olhos, como se quisesse fugir da fumaça. Era um ritual que se tornou um quadro pintado na minha memória.

Hoje eu aprimorei a técnica. Uso um fogão a gás e ouço rock´n roll no fone de ouvidos e devoro uma guloseima qualquer, enquanto reviro uma bermuda bem usada no tacho com uma colher de pau de cabo longo. Daqui a pouco, a bermuda vai ficar balançando ao vento no varal, tão azul quanto irreconhecível. Era bem como fazíamos com os jeans velhos no final da década de 70, usando tubos de tinta verde para deixar as calças com aparência do famoso efeito “stone washed”, tentando fazer com que nossas surradas roupas copiassem as peças que apareciam nos comerciais de TV, das badaladas grifes da época. Que criatividade!

Uma vez ouvi ou li em algum lugar que a mudança é a única coisa constante nesta vida. Tudo muda o tempo todo no mundo, como diz a letra da canção. Nossas percepções também. Infelizmente, nem tudo muda pra melhor. Uma coisa é certa: todos precisamos nos renovar. Não necessariamente temos que jogar tudo fora e ficar sempre nos dividindo em antes e depois. Aprender, num conceito bem piagetiano, é construir conhecimento a partir da interação com o objeto de estudo.

Estou aqui olhando pra essa bermuda com cara de nova pronta para uma reestreia, e pensando em como precisamos rever alguns conceitos, ressignificar outros tantos, internalizar e consolidar princípios, traduzindo-os em atitudes. Muitas vezes temos que mudar de cor, mudar de lado, fazer um constante exercício de tirar a si próprio do centro, para aprender a olhar pela ótica do outro, para melhor compreendê-lo, para não o discriminá-lo ou rotulá-lo.

Digo mais, é impossível exercitar amor estando imbuídos de tanto preconceito, julgamento, agindo como a palmatória do mundo, cheios de justiça própria. Penso que às vezes temos que nos mergulhar em um tacho de misericórdia, de complacência, de tolerância, nos despojar do nosso velho homem e sairmos de lá renovados, para andarmos em novidade de vida! Da mesma forma que eu olho para esta peça de roupa que agora me veste, maravilhado como o resultado da tintura e surpreendendo quem a conhecia desbotada e gasta, que as pessoas nos olhem e reconheçam em nós uma mudança pra melhor, uma renovação, um frescor.

Que o sangue de Jesus Cristo nos tinja do vermelho do amor, a cor que tem o poder de cobrir a multidão de nossos acinzentados erros e pecados.

Feliz Natal! Renove-se! Renasça!

Tudo muda, é verdade, mas que o amor permaneça…e prevaleça!

Pr. Anibal Filho

Doutor em Produção Vegetal pela UFG e Pastor auxiliar da Igreja Batista Renascer.

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