E agora, José?

imagem: envato

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Enquanto ajeitava as esferas leves e coloridas em uma caixa de papelão forrada com papel picado, fazia um verdadeiro ninho com as fitas verdes e douradas que imitavam as folhas de um pinheiro silvestre. O pensamento estava distante e a casa vazia, em nada lembrando os tumultuados dias do final do ano passado, quando um cheiro de comida inebriava a todos em volta da grande mesa da varanda e tudo que se ouvia era um turbilhão de vozes misturadas  ao choro de criança de colo, latidos de cães no quintal irritados com os fogos e uma música instrumental ao fundo, lutando para ser ouvida.

Agora era apenas o som do silêncio e a viagem da mente absorta em pensamentos recorrentes, entre contas a pagar, planos a curto prazo e a inquietação sobre o futuro que já tinha chegado. No ano passado, os meses foram como episódios de uma série televisiva e agora cabia ao protagonista encontrar a conexão com o primeiro episódio desta nova temporada.

O Diploma ainda era só virtual, mas já era realidade. O número de aniversários já começava a despertar a curiosidade dos outros, aqueles que pareciam ter uma vida tão irrelevante para cuidar, e gastavam seu tempo para elaborar perguntas inconvenientes sobre emprego, casamento e finanças. Ele sabia que todas essas coisas eram importantes também para ele, tanto que até já se sentia pressionado pela autocobrança, só não admitia, para não dar fôlego aos pedantes.

Pronto. Tudo embalado e guardado em cima do guarda-roupas, onde ficariam por meses, até recomeçarem os preparativos para um novo Natal. Agora o teto da sala era o alvo, com olhar desviado às vezes para o ventilador de teto parado, às vezes para a cortina entreaberta. O som da respiração suave e profunda era o único som em contraste com a música cafona do vizinho distante, que parecia ainda não ter percebido que a festa acabou. Ao alcance da mão, na estante pontilhada de porta-retratos e souvenirs, uma Bíblia surrada esperava imponente.

Alguns minutos depois, quase que de repente, um versículo salta aos olhos e provoca um fervilhar de pensamentos. Os mesmos olhos se fecham serenamente em seguida, como se fosse tirar um cochilo. A mente não permite uma abstração, o coração concorda e o mantém aceso, mesmo com os olhos fechados por alguns minutos. O balbuciar de uma oração quase silenciosa foi inspirado  pelo texto.

O tempo não vai esperar, a vida também não. O sofá começou a ficar espinhoso, o calor inquietante percorre o corpo, os olhos se abrem perceptivelmente emocionados. A vida parece conspirar para uma tomada de atitude. Agora sentado no sofá, olhos despertos, um menear positivo de cabeça, as mãos dando impulso nos joelhos, uma olhadela no visor do relógio.

O que parece o enredo de uma cena de filme que exige uma continuação é apenas um homem que parece ter sido atingido pela flecha da urgência. A vida segue. A vida pulsa. Não foi o versículo agindo como uma varinha de condão. Foi o Espírito Santo impulsionando um pequeno recomeço, como um rio que será caudaloso um dia, mas que precisa de um olho d’água para começar.

Ventilador ligado, cortina aberta para o sol entrar de vez e o roncar de um motor que se alegra ao ouvir o portão se abrir. Ele está preparado, a  oportunidade está vagando pelas ruas da cidade, haverá uma colisão inevitável. Alguns dirão que foi sorte, mas ele saberá que foi Deus!

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