Um dia de rotina para a mulher invisível

“Que camisa impecável! ” Foi o primeiro elogio do dia que ele ouviu tão logo que abriu a pasta sobre a mesa do escritório e começou a tirar alguns relatórios que foram empilhados próximo à tela do computador. “Tenho que manter a linha, não é? ” Respondeu ele à secretária com um sorriso grato e meio tímido. Em alguns minutos, logo estava adentrando a sala novamente, segurando um copo de café fresco do qual sorvia pequenos goles. Arredou a poltrona e se sentou confortavelmente, ajustando a tela do computador à altura de seu olhar. Passaria o dia todo ali. Já havia depositado sua marmita na geladeira da cozinha do conglomerado de escritórios e agora aguardava o boot se completar para dar início à agenda do dia.

Segunda-feira, oito da manhã, burburinho de gente chegando, portas se abrindo e sonoros bons-dias vindo do corredor. Sua secretária anunciou que ele teria reunião às nove, com um cliente que afirmou por telefone ter sido seu amigo de faculdade, do qual, por nome, ele não se lembrava. Tanto tempo havia passado! Ele já estava casado, dois filhos pequenos, uma agenda intensa de trabalho, o tempo realmente havia voado e lembrar de todos os colegas de faculdade era uma tarefa quase impossível. Ficou tentando lembrar do suposto amigo por um tempo, mas mergulhou nos infindáveis textos e peças jurídicas até ser avisado que o novo cliente o aguardava na sala de reuniões.

“Meu Deus, como você está bem! ” Foi o segundo elogio do dia, o que o fez sorrir satisfeito estendendo a mão e apertando para o senhor de quase quarenta anos que o cumprimentava efusivamente. Tinham praticamente a mesma idade, mas o “colega” parecia já ter mais de meio século de vida, tão combalido pelo tempo, sabe-se lá com que hábitos e enfrentamentos. “Bem, isso é fruto de muita disciplina na academia e uma refeição super balanceada, nada demais” –  respondeu sendo simpático.

Alguns minutos de amenidades e logo estavam tratando de uma causa espinhosa: um divórcio litigioso. O “amigo” que lhe tecera os maiores elogios pela forma física, agora estava ali, talvez o confundindo com um terapeuta, destilando ódio e mágoa contra a ex-esposa, com uma riqueza desnecessária de detalhes. “Quantos anos de casado você tem? ” – Perguntou o cliente com ar de quem quisesse testar seu nível de contentamento com o casamento. “Quase quinze” – Respondeu, sem o mínimo interesse de falar de sua vida pessoal. Um bom tempo depois, de volta ao seu escritório, verificando as horas no relógio de pulso enquanto dava passos rápidos em direção à sua porta, só teve tempo de passar pela cafeteira e saborear mais um expresso quente.

Hora do almoço. Refeitório com poucas cadeiras vazias e conversas evasivas enchiam o ambiente. Entra e sai de entregadores com sacolas, pedidos e máquinas de cartão. Alguns passos o levaram da geladeira ao micro-ondas com sua marmita fitness à mão. Tudo muito bem preparado e dividido: os carboidratos, as proteínas, as gorduras boas, a sobremesa diet. “Parece bom hein? É de se comer com os olhos! ” – Disse um parceiro de causas antigas, sentando-se à mesma mesa.

Dessa vez o elogio foi para a marmita, pensou, mas não deixa de ser um elogio. Quase meia hora depois, recostado em sua poltrona e tentando se desligar e dormir que fosse por três minutos, tudo que lhe vinha à mente era sua cama com lençois impecavelmente limpos e perfumados. Quem dera se uma daquelas leves massagens nos pés que recebia da esposa ao fim de um dia exaustivo pudesse acontecer ali, naquele momento relax.

Fim do dia. Despedidas e “até-amanhãs” quase mecânicos no elevador, trânsito, buzinas, aborrecimentos urbanos. Quando entra em casa, vê o filho mais velho que parece mal-humorado no canto do sofá, olhos fitos na tela da TV. “Oi, pai! ” –  disse o menino sem desviar o olhar enquanto ele afrouxa a gravata. “Parece que não foi um bom dia” – responde como se fosse por obrigação, sem se aproximar do garoto. A mulher se aproxima e ensaia um abraço caloroso, mas ele está com pressa e mal corresponde. “Você lavou aquelas roupas de academia? ” – Pergunta tirando os sapatos forçando os calcanhares com os dedos. “Sim, está na gaveta de sempre”, responde a mulher, parecendo frustrada.

Ele some por uns minutos, enfurnado no quarto, se preparando para sair novamente. Quando volta, enquanto tira um squeeze do armário e prepara sua dose de pré-treino, ela tenta puxar conversa, mas ele se mostra lacônico e frio. Tudo que ela recebe é um beijo rápido, quase sorrateiro, antes da porta da sala se fechar atrás dele e ela ouvir o ruído do portão eletrônico e do motor de partida do carro.

Ela apoia as mãos sobre a mesa, olha pro teto e seus pensamentos bem que poderiam ser:  camisa impecavelmente passada, marmita preparada com tanto amor, lençóis aconchegantes pra descansar, roupa pronta a tempo e a hora. Sem contar a reunião na escola dos filhos, a rotina de cuidado com a casa para que tudo esteja em ordem, o trato silencioso com os dilemas e demandas pessoais sem tempo de qualidade para compartilhar, o tempo doado, a vida entregue a uma rotina tediosa. Mas, provavelmente nem seja isto que lhe ocorra, talvez seja a dúvida sobre o que preparar para o jantar, ou o dilema do filho na sala, ou talvez as carências do menorzinho que brinca sozinho de Lego no quarto.

De qualquer forma, ela é a heroína invisível, a contrarregra dos bastidores, a responsável pela coxia. Tudo isto e mais um pouco para que o “ator principal” brilhe num palco e receba os elogios e aplausos, sem parecer se importar em atribuir os créditos a quem são devidos. Afinal, no fim de cada capítulo da “vida que segue”, não existem letrinhas subindo pra atribuir o mérito a quem é de direito, a menos que a notoriedade desse espetáculo não seja tão egoísta, a ponto de esquecer quem trabalha para que ele seja um sucesso de crítica!

Pr. Anibal Filho

Doutor em Produção Vegetal pela UFG e Pastor auxiliar da Igreja Batista Renascer.

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