O que é isso, vovô?

Quando olhei para a bagunça que ele fazia na primeira gaveta da escrivaninha, tirando todas as coisas, como: cabos, moedas, grampos, pilhas, capas de celulares e outras bugigangas e as colocando sobre a impressora, me deparei com aquele par de olhinhos pretos curiosos me fitando no meio da pergunta, segurando uma esfera de vidro na mão.

Por um instante, foi como se aquela imagem congelasse e minha mente retrocedesse em quase meio século. Foi como me teletransportar para a sombra de uma frondosa mangueira no quintal, onde meninos descamisados e descalços olhavam atentamente se as bolinhas cairiam nos buracos cavados na terra batida, nos vértices e no centro de um quadrado de não mais que dois por dois metros.

Foi como ouvir a algazarra dos vencedores que ganhavam todas as bolinhas espalhadas próximas a uma parede, quando uma única bolinha era acertada no meio de muitas que iam se amontoando. Impossível não lembrar de um triângulo desenhado no chão com um número par de bolinhas, depositadas proporcionalmente por dois jogadores. Depois, era só se afastar até o risco feito a cerca de dois metros para tentar espalhar com uma bolinha maior as que estavam retidas no triângulo.

Briga certa era quando algum jogador trapaceiro sacava do bolso seu “catoio”, uma esfera pesada extraída de rolamentos, que usava no lugar da esfera de vidro, provocando uma confusão daquelas. “Isso não é de val”, resmungava o oponente.

Não eram apenas as “bilocas” que divertiam. Existiam as fincas, pequenos espetos de aço que eram lançados ao chão molhado e desenhavam itinerários até o interior de uma espécie de garrafão previamente delineado no solo. O traço percorria todo o contorno até alcançar o alvo, a não ser que algum hábil jogador conseguisse realizar a proeza de uma fincada subterrânea, que nada mais era do que criar um atalho para o interior do garrafão cortando o risco por baixo, como se fosse um ponto de costura de agulha, o que permitia adentrar ao garrafão rabiscado no chão sem dar a volta toda no grande círculo com pequenos traços emendados.

De repente, vieram as lembranças da “salve latinha”, no escuro da noite quando todos se escondiam e alguém tinha que chutar uma lata colocada estrategicamente no meio do nada, sem ser pego pelo “guarda” que saía pé-ante-pé à procura dos escondidos, deixando a latinha ”desprotegida”. Como não lembrar o Bete, uma espécie de beisebol das periferias? As queimadas, o pula-cordas, os peões, os ioiôs feito de botões, os estilingues de forquilhas de goiabeiras e mangueirinhas emborrachadas, os bilboquês feitos com latinhas de extrato de tomate? A mente viajou em segundos…

“O que é isso vovô?”—  insistia o garotinho de cabelos corridos quase loiros. De volta à realidade, eu disse apenas: “Se chama bolinha de gude”. Como ele ainda não chegou à fase dos “porquês” e “paraquês”, ficou por isso mesmo. Enquanto eu voltava meus olhos para a tela do computador para tentar continuar meu texto até surgir a próxima pergunta ou ter que interromper alguma travessura, fiquei pensando no quanto é bom guardar um souvenir de boas memórias na gaveta.

Se a Bíblia ensina que devemos trazer à memória aquilo que nos dá esperança, que seja uma bolinha de gude para nos remeter a um tempo de inocência, de sonhos, de planos e, voltando os olhos para o presente, ver o quanto Deus já nos abençoou de lá pra cá!

Pr. Anibal Filho

Doutor em Produção Vegetal pela UFG e Pastor auxiliar da Igreja Batista Renascer.

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Annelisa Santos
Annelisa Santos
1 ano atrás

Texto emocionante, de encher o coração de boas lembranças e ao mesmo tempo remeter ao presente, uma dádiva que nos é dada para louvarmos a Deus em todo o tempo pela graça até aqui alcançada!

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