Uma nova manhã

Ela não teve um dia fácil. Dava pra ver na expressão cansada e olhos já teimando em permanecer abertos e atentos. Ainda restava uma tarefa, já adiada algumas vezes ao longo do dia, mas que não podia mais ser postergada. Ela se afastou da pia enxugando as mãos no avental de bolsos bordados com margaridas brancas, pra depois ajeitar os pesados óculos na ponta do nariz. Portas e gavetas de armários se abrem, pacotes e frascos são espalhados pela mesa de madeira com forro quadriculado, que mais lembrava uma decoração de restaurante italiano. Fubá de milho, ovos, farinha, fermento. O leite havia sido fervido mais cedo e já aguardava frio no grande caneco de alumínio, repousado na grade do fogão a gás. Faltava o óleo e o açúcar, mas o armário ficava ao lado da pia, bastava arrastar mais um pouquinho as sandálias pelo piso da cozinha, até juntá-los aos outros ingredientes.

Ela não sabia que estava sendo observada, por isso não se distraía facilmente, tanto metódica quanto lenta. Um copo de medida aqui, umas colheradas ali, uns punhados bem dosados que mais pareciam aleatórios, até tudo virar uma massa cremosa. Volta e meia, ela dava uma espiadela no antigo caderno de receitas, daqueles com capas almofadadas azuis com rosas já descoradas pelo manuseio. As páginas amareladas ainda tinham resquícios de nanquim, mas o caderno nem fechava mais por causa das embalagens recortadas com receitas e guardanapos com anotações de telefones.

A forma redonda de alumínio bem polido seria a conta! Ela olha satisfeita para o vasilhame untado. “Que cabeça a minha”, resmunga. “Esqueci de aquecer o forno!” Ela fica encurvada olhando a chama azul se espalhar, mas se lembra de testar o sabor. Uma colher de pau cede um pouquinho da massa pronta para a palma de sua enrugada mão e ela fita o teto enquanto parece analisar a presença de cada ingrediente na língua. Logo balança positivamente a cabeça, enche a forma e a deposita gentilmente no forno. Olha o relógio de parede, balbucia algumas contas de cabeça e diz baixinho: “é o tempo de tomar um banho pra dormir e volto pra desenformar”.

Quando retorna à cozinha um tempo depois, já vestida para repousar, espia novamente o relógio de parede e absorve o cheiro doce do bolo de fubá quase assado, destacando um leve aroma de erva doce.  Quando sai da forma, bem que poderia ser fotografado para uma revista de receitas, formoso que está e parecendo apetitoso que só.

Na manhã seguinte, a cena vai se repetir: depois do abraço caloroso ainda na porta de entrada ela vai ouvir:  “fez, vovó?”

“Claro meu amor!” – Dirá satisfeita!

“Já está na mesa te esperando!” Um copo de leite fresco, um café quente, algumas guloseimas compradas. Mas, ele reina absoluto atraindo todos os olhares e não demora a ser delicadamente fatiado e apreciado lentamente.

Uma nova manhã, uma nova boa memória plantada, um reforço positivo no afeto, um gesto que reflete cuidado, amor, alegria de colher um sorriso pra aquecer o dia!  E a gente fica pensando… enquanto dormimos e sonhamos com uma promessa, Deus trabalha no turno da noite, para nos alcançar de manhã com uma bênção especial. Sempre haverá “Esta” boa mão juntando todos os ingredientes, cuidando dos detalhes, mudando as circunstâncias à nossa volta, para nos lembrar o quanto somos amados e o quanto vale a pena esperar pela manhã seguinte, quando, mais uma vez, a Sua maravilhosa graça vai nos alcançar!

Pr. Anibal Filho

Doutor em Produção Vegetal pela UFG e Pastor auxiliar da Igreja Batista Renascer.

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