Uma Santa Ceia: o prato principal

imagem: envato

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O café esfriava na mesa. Uma velha senhora ajeitava os pesados óculos e parecia ter os olhos marejados depois daquela conversa tensa que já durava quase uma hora. A outra, parecia haver esgotado todos os argumentos, além de já ter citado todos os versículos sobre perdão. A Bíblia surrada com versos destacados em lápis de cor repousava aberta ao lado da bandeja de alumínio com xícaras em porcelana ornamentadas com pequenos buquês de rosas. “Eu não tive a intenção de ofendê-la, você sabe”, disse a senhora em tom embotado.

“Você me conhece! A vida inteira “pelejei” pra não haver desavenças na família, mas foi só surgirem estes grupos de mensagens pra virar esse tormento, esse clima de guerra, ainda mais por causa destas eleições”, disse pausadamente enquanto deslizava os dedos para ajeitar o forro da mesa.

“Eu sei, tia!”, foi o que disse a sobrinha. “Mas ela também é minha tia e me dói muito ver que a relação de vocês está estremecida. Não vou mentir”,disse assertiva. “Eu convidei a senhora pra vir aqui justamente pra perguntar se posso fazer alguma coisa pra ajudar. Não me conformo. Eu tentei colocar panos quentes lá no grupo quando ela e a senhora saíram. Pelo que sei já nem se falam mais, não é verdade?”, questionou.Sim”, respondeu a senhora, com o olhar inerte como se fitasse um canto da cozinha.

“Eu tive uma ideia e queria saber se a senhora está disposta a ceder, mesmo não tendo tido a intenção de magoar ninguém com a exposição de seu ponto de vista, mas isto não vem mais ao caso”, propôs a sobrinha anfitriã. “Vamos conversar pra ver”, disse a tia, levantando os olhos resignada, mas com certo brilho esperançoso nos cansados olhos, cercados por rugas já bem expressas.

Ceia de Natal. A sobrinha está aflita ajeitando os últimos detalhes com a ajuda das meninas e o que se ouvia na casa era o tilintar de pratos e talheres, o barulho dos meninos no videogame no quarto. A idosa tia já tinha chegado e estava entretida na sala vendo alguns álbuns de fotos, parte do plano da sobrinha para aquecer o coração da velha tia, a qual jamais imaginava o que estava por acontecer em poucos minutos.

De repente, os pequeninos cães sentiram que havia gente no portão e correram pela casa latindo. Soa o som do interfone. “Que Deus tenha ouvido as minhas orações”, pensou a sobrinha, apertando os punhos enquanto se dirigia à porta e se desfazia do avental.

Os adolescentes entraram primeiro, correndo e se juntando aos meninos no quarto. Os álbuns de fotos foram postos de lado no sofá, quando a velha senhora percebeu que havia mais alguém na sala. Foi desconcertante, mas impossível não olhar nos olhos, engolir em seco e perder as palavras. Na verdade, qualquer palavra foi desnecessária.

A senhorinha pareceu fazer menção de passar direto para cozinha e deixar a sobremesa que havia preparado pra ceia, mas percebeu que caíra numa santa cilada. Colocou a forma de pudim coberta com um pano bordado ao lado da televisão desligada no rack. Quando ergueu os olhos, já haviam dois braços quase obesos abertos à sua espera. Um abraço meio desajeitado. Foi a velha senhora quem tomou a iniciativa: “Só falta você ter trazido aquele pudim de laranja maravilhoso, daquela receita que te passei pelo aplicativo, minha sobremesa preferida!”, disse  ela, sorrindo e quebrando o gélido silêncio.

“Sim”, respondeu sua irmã mais nova, com um sorriso amarelo, mas ao mesmo tempo feliz. Outro abraço, só que desta vez ainda mais longo, com direito a afagos nas costas de ambas.

“Vamos tias, o jantar está servido e já vou avisar a criançada”, disse a sobrinha com olhos marejados, que observava tudo de longe, sem ser percebida. Tudo que lhe veio à mente foi o versículo que lhe saltou aos olhos na manhã do dia que convidou a velha tia para o café, para propor aquele encontro surpresa: “Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus”.

Foi uma ceia memorável! Parecia que o olhar do próprio Deus repousou sobre a casa naquela noite, onde o perdão foi o prato principal.

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