Contudo, Senhor, Tu és o nosso Pai! Redescobrindo o Pai

Em conversa recente com o Pastor Ricardo Barbosa de Souza, da Igreja Presbiteriana do Planalto, em Brasília, autor do aclamado livro O Caminho do Coração (Editora Ultimato, 2017 – 5ª edição), o qual já tornou-se um clássico e também um guia precioso para a redescoberta da espiritualidade cristã na igreja brasileira, fomos autorizados a reproduzir alguns parágrafos do capítulo 4: “Redescobrindo o Pai”, que versa sobre a centralidade do Pai na espiritualidade de Jesus. Procurando ter o devido cuidado de não mutilar o excelente texto em sua fluidez, tomamos a liberdade de separar alguns trechos que nos remetem à necessidade de redescobrirmos e/ou ressignificarmos nossa relação com Deus Pai, nos moldes da relação que seu filho Jesus estabeleceu com Ele. Vamos aos excertos:

“O vazio relacional provocado por uma sociedade individualista, competitiva e consumista conduz-nos a um estilo de vida e a um modelo de espiritualidade que negam o lugar do Pai, desenvolvem relações utilitárias e profissionais e procuram preencher, por meio do ativismo, os espaços e lacunas deixados pela nossa carência afetiva. Boa parte dos conflitos emocionais e espirituais que enfrentamos hoje, nasce dessas lacunas não preenchidas. E, quando tentamos preencher esses vazios com o nosso ativismo profissional ou religioso, com as inúmeras responsabilidades e experiências que acumulamos, cedo ou tarde concluiremos que eles ainda permanecem lá. Não serão nossas atividades profissionais ou mesmo religiosas que preencherão o vazio da nossa alma. Toda propaganda está direcionada para cumprir a finalidade de dar ao homem algum sentido de realização a partir do ter, e não do ser. No entanto, o que encontramos nos evangelhos, e particularmente na vida de Jesus é que a realização humana dá-se nas relações de amor e amizade que construímos, e não nas coisas que fazemos ou temos, por mais relevantes e sagradas que possam ser.

Conhecer o Pai, pela mediação do Filho, no poder do Espírito Santo, constitui a fórmula trinitária do conhecimento de Deus. Esse conhecimento não nasce a partir de uma experiência humana existencial. O conhecimento do Pai só é possível mediante a revelação do seu Filho no poder do Espírito Santo. “A palavra Aba torna claro que o novo nome por meio do qual nos aproximamos de Deus não é fruto da nossa escolha, mas tem sua origem única na linguagem de Jesus, que aproximou-se do Pai desta forma. Chamar Deus de Pai é reconhecer que temos que aprender a fazer isto por meio de Cristo, que o direito de usar esta expressão procede d’Ele e é conferido a nós pelo Espírito Santo, que torna em nós real aquilo que primeiramente o foi na pessoa de Cristo.

Deus não é nosso Pai porque projetamos sobre Ele essa imagem e o fizemos nosso Pai a partir dos referenciais que construímos nas nossas relações humanas. Ele é Pai porque tem um Filho, e é por meio do Seu Filho Jesus Cristo que Ele nos é revelado como Pai. Deus é então nosso Pai porque em Cristo Jesus Ele nos adotou e nos deu o Espírito do seu Filho, que, em nossos corações, clama Aba-Pai. Esse princípio é importante porque é comum projetar em Deus as imagens paternas que construímos. E só por meio de Cristo que podemos conhecer Deus como Pai. É Cristo que nos revela a paternidade de Deus. E na relação que Cristo tem com o Pai que encontramos o modelo e o caminho da nossa relação com Ele.

Redescobrir Aba-Pai abre as portas para um novo relacionamento com Deus e o mundo, onde o centro não será mais a realização profissional, mas o relacionamento pessoal. E, uma vez que minhas buscas não são mais fruto do meu egoísmo, no encontro com o Pai encontro-me também como pessoa. Santo Agostinho afirmou que o homem é aquilo que ele ama. Se quisermos conhecer alguém não devemos perguntar o que ele ou ela faz, mas o que mais ama. É no amor que nós nos realizamos enquanto pessoas, o Aba-Pai abre as portas para esse encontro afetivo. Infelizmente, muitos de nós estamos habituados ao jogo da manipulação, da chantagem emocional, do exercício do poder e do controle.

Nossos gestos de carinho e intimidade quase sempre estão carregados de outras intenções. São apenas meios que aprendemos para conquistar nossos interesses pessoais. É comum nossos filhos se aproximarem de nós com palavras de carinho, usando diminutivos afetivos, porque querem algo que sabem que em condições normais não receberiam. Desde muito cedo aprendemos a usar as pessoas, e não a reverenciá-las em respeito à sua singularidade diante de Deus. Perdemos o caminho do encontro com o outro, da relação pessoal. Relacionar-se, para muitos hoje, é a arte de saber tirar vantagens.

O risco que corremos é o de não experimentar aquilo que foi o centro da vida e espiritualidade de Jesus: sua relação com o Pai. Que Deus é rico em poder e desejoso em abençoar seus filhos, é uma verdade da qual não temos dúvida alguma. No entanto, a pergunta que se coloca diante de nós é: em que sentido a expressão “Aba” manifesta-se em nossos lábios? Usamos essa expressão para manipular e receber os favores de Deus ou para devotar a Ele a nossa mais completa e perfeita devoção e obediência? O que está em jogo não é o poder de Deus, nem seu desejo em abençoar seus filhos, mas o motivo que nos leva a buscá-lo, a chamá-lo de Pai. O amor e o afeto criam em nós outras motivações para nossos relacionamentos. O que nos motiva não são os benefícios do amor, mas sim a alegria do encontro, a certeza de ser amado e poder amar.

Redescobrir Aba é redescobrir o lugar do coração e dos afetos na espiritualidade cristã. É encontrar na obediência amorosa o sentido mais profundo da realização humana. É oferecer ao Pai a mais completa e reverente submissão. É experimentar uma relação tão profunda de amor e aceitação que nos permite orar dizendo: “Não a minha vontade, mas a tua”.

Se, por um lado, necessitamos redescobrir Aba-Pai, por outro necessitamos nos redescobrir como filhos. Aceitar Deus como Pai tem sido muitas vezes impedido pelas lembranças do passado. A imagem que guardamos dos nossos pais, as feridas que trazemos da nossa infância criam distorções à imagem que fazemos de Deus como Pai, e seria ingenuidade pensar que essas lembranças e feridas da nossa infância não afetam nossos relacionamentos, principalmente o que temos com Deus.

Outro aspecto que caracteriza a centralidade do Pai na vida e ministério do Filho foi a disposição de Jesus em ouvir primeiro antes de agir. Nossas orações normalmente são monólogos que estabelecemos com Deus. Apresentamos nossas listas com as necessidades mais diversas, nossas súplicas, muitas vezes com exigências absurdas, e esperamos que Deus as cumpra, revelando assim o Seu poder e amor por nós. Jesus priorizou a voz do Pai não apenas no batismo no rio Jordão, mas também durante todo o seu ministério. A oração que ele ensinou aos seus discípulos foi aplicada radicalmente em toda a sua vida: “Seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu”. Ele, com frequência, se retirava para lugares solitários a fim de ouvir a voz do Pai e conhecer Sua vontade. É importante também notar o significado do silêncio e a necessidade de ouvir, para a missão do Filho. Ao dizer que não fala, julga ou faz qualquer coisa sem antes ouvir o Pai, Jesus demonstra que Ele não tem uma missão própria. Para os cristãos ortodoxos, a submissão deve ser entendida como uma disciplina espiritual, uma postura que assumimos diante das pessoas e do próprio Deus, que os habilita a ouvir e a interagir com humildade, encontrando o espaço para relações mais profundas e íntimas. Essa experiência só será possível mediante o reencontro com Deus como nosso Pai”.

Árdua tarefa esta de pinçar em 33 páginas, de uma riquíssima exegese pontuada de referências bíblicas e exemplos, alguns trechos que traduzissem as intenções e inspirações do autor. Que nos aprofundemos nesta relação com nosso Pai,  cuja centralidade em nossa vida depende de nossa profunda e verdadeira conversão.

Pr. Anibal Filho

Doutor em Produção Vegetal pela UFG e Pastor auxiliar da Igreja Batista Renascer.

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